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sábado, 23 de junho de 2007

REFLEXÕES SOBRE O BUDISMO ENGAJADO - TEXTOS CLÁSSICOS

O Budismo e a revolução por vir*
(1969)


De Gary Snyder**

Na ótica budista, o que impede toda manifestação natural e espontânea é a ignorância que se projeta no medo e o apetite desnecessário. Historicamente, os filósofos budistas não souberam analisar até que ponto a ignorância e o sofrimento são causados ou favorecidos por fatores sociais, considerando o medo e o desejo como elementos intrínsecos à condição humana. Assim, a filosofia budista interessou-se principalmente na teoria do conhecimento e a psicologia em detrimento da análise de problemas históricos ou sociológicos. Embora o Budismo Mahayana possua uma ampla visão de salvação universal, a sua efetiva realização foi o desenvolvimento de sistemas práticos de meditação para libertar a uma minoria de indivíduos de perturbações psicológicas e condicionamentos culturais. O Budismo tradicional esteve claramente disposto a aceitar ou a ignorar as desigualdades e as tiranias sob qualquer sistema político. Isto significa a morte do Budismo, posto que é a morte de qualquer forma de compaixão. A sabedoria sem compaixão não sente dor.

Hoje em dia, ninguém pode mais se achar inocente ou permanecer ignorante sobre a natureza dos governos, a política e as ordens sociais contemporâneas. Os regimes do mundo moderno mantêm sua existência através da avidez e o medo deliberadamente cultivados: monstruosos extorquidores de proteção. O “mundo livre” tornou-se economicamente dependente de um fantástico sistema de estimulação de uma avidez que não pode ser contida, uma sexualidade que não pode ser satisfeita e um ódio que não pode ser expresso a não ser contra nós mesmos, as pessoas que supõe-se que amamos ou as aspirações revolucionárias de lamentáveis sociedades marginais flageladas pela pobreza como Cuba ou o Vietnã. As condições da Guerra Fria transformaram todas as sociedades modernas – incluindo as comunistas – em viciosos distorcedores do verdadeiro potencial humano. Geram legiões de pretas – fantasmas famintos com um apetite de gigante e uma garganta não mais ampla do que uma agulha. A terra, os bosques e toda a vida animal são utilizadas por essas coletividades cancerosas que contaminam o ar e a água do planeta.

Não há nada na natureza humana ou nas condições necessárias para a organização social humana que exija intrinsecamente que uma cultura seja contraditória, repressiva e produtora de uma humanidade violenta e frustrada. Recentes descobertas antropológicas e psicológicas o demonstram de forma cada vez mais evidente. Podemos ver isso por nós mesmos mediante uma percepção correta da própria natureza ou através da meditação. Uma vez que a pessoa tenha desenvolvido tal confiança e intuição, isto deve ser traduzido em um engajamento real com a necessidade de uma mudança social radical através de uma ampla variedade de meios preferentemente não-violentos.

A pobreza feliz e voluntária do Budismo torna-se uma força positiva. A sua tradicional não-violência e o seu rechaço à eliminação de qualquer forma de vida tem implicações espantosas para as nações. A prática da meditação, que só necessita da “terra debaixo dos pés”, limpa as montanhas de imundice que os meios de comunicação e as universidades supermercado jogaram nas nossas mentes. Acreditar que a realização tranqüila e generosa do desejo natural de amar é possível destrói as ideologias que cegam, mutilam e reprimem. Esta consciência abre caminho a um tipo de comunidade que assustaria aos “moralistas” e transformaria exércitos de homens que são guerreiros por não terem podido ser pessoas de amor.

A filosofia budista do Avatamsaka (Kegon) vê o mundo como uma ampla rede interconectada na qual todos os objetos e os seres são necessários e iluminados. De um certo ponto de vista os governos, as guerras e tudo o que consideramos “ruim” está, sem dúvida, dentro desta globalidade. O falcão, o vôo em picada e a lebre são uno. Do ponto de vista “humano”, não podemos viver nestas condições a menos que todos os seres enxerguem com o mesmo olhar desperto. O Bodhisattva vive segundo o padrão do que sofre e sua ajuda aos que sofrem deve ser efetiva.

A grande conquista do Ocidente foi a revolução social; a do Oriente o insight individual sobre o vazio essencial de um eu. Necessitamos de ambas. Ambas estão contidas nos três aspectos tradicionais do caminho do Dharma: a sabedoria (prajña), a meditação (dhyâna) e a moralidade (sîla). A sabedoria é o conhecimento intuitivo da mente de amor e claridade que jaz debaixo das ansiedades e as agressões dirigidas pelo ego. A meditação é ir até o âmago da mente para ver isto tudo por si mesmo – uma e outra vez, até que se torne a mente em que a pessoa reside. A moralidade é levar isto de volta para o dia a dia na maneira como se vive, através do exemplo pessoal e a ação responsável, e em última instância até a verdadeira comunidade (sangha) de “todos os seres”.

Este último aspecto tem um sentido que, para mim, sustenta toda revolução cultural ou econômica claramente dirigida à criação de um mundo livre, internacionalista e sem classes. Significa utilizar meios como a desobediência civil, a crítica aberta, o protesto, o pacifismo, a pobreza voluntária e inclusive a violência gentil quando houver que conter a algum reacionário impetuoso. Significa manter o leque de todos os comportamentos individuais não-violentos o mais amplo possível – defendendo o direito dos indivíduos de fumar cannabis, comer peyote, de ser polígamo, poliandra ou de ser homossexual. Comportamentos e práticas proibidas durante muito tempo no Ocidente judeu-capitalista-cristão-marxista. Significa respeitar a inteligência e o aprendizado, mas não como avidez ou meio para conseguir poder pessoal. Trabalhar sob a própria responsabilidade, mas querendo trabalhar em grupo. “Formar a nova sociedade dentro da casca da antiga” – foi o slogan do sindicato Industrial Workers of the World cinqüenta anos atrás.

De todas formas, as culturas tradicionais estão condenadas a desaparecer e, mais do que agarrar-nos desesperadamente aos seus bons aspectos, deveríamos nos lembrar de que qualquer coisa que pertenceu ou pertence a outra cultura pode ser reconstruído a partir do inconsciente, através da meditação. De fato, acredito que a revolução por vir voltará a fechar o círculo e, de várias formas, nos unirá novamente com os aspectos mais criativos do nosso passado ancestral. Com um pouco de sorte, no final poderemos chegar a uma cultura mundial totalmente integrada com transmissão matrilinear, casamento em formas livres, economia comunista de crédito natural, menos industrias, muito menos gente e muito mais parques nacionais.


Para ler a versão original em inglês deste texto, clique
aqui.


* A primeira versão deste texto foi publicada em 1961 com o título de Buddhist Anarchism (Anarquismo Budista) no Journal for the Protection of All Beings (nº 1, City Lights, 1961). Uma segunda versão revisada apareceu com o novo título de Buddhism and the Coming Revolution (O Budismo e a Revolução Por Vir) no livro de Snyder Earth House Hold (New Directions, 1969). Na introdução, o autor explica: "Sendo problemático o termo anarquismo, alguns anos depois revisei e dei um novo título ao texto. Nos anos Cinqüenta, em São Francisco, entendiamos por anarquismo uma filosofia não-violenta de autogestão e comunitarismo. Mas acontecimentos, como os atentados de bombas de século Dezenove, são atribuidos aos anarquistas. Suponho que sempre houve duas correntes anarquistas, a violenta e a pacifista". Uma terceira versão intitulada Buddhism and the Possibilities of a Planetary Culture (O Budismo e as Possibilidades de uma Cultura Planetária) foi publicada mais tarde em várias obras (The Path of Compassion: Writings on Socially Engaged Buddhism, ed. Fred Eppsteiner, Parallax Press, 1985; Deep Ecology, ed. Bill Devall & George Sessions, Peregrine Smith, 1985). A publicada aqui é a segunda versão de 1969.

** Gary Snyder é um poeta norte-americano, praticante do Zen Budismo, montanhista, ativista ambiental, filósofo da ecologia profunda, membro fundador da Geração Beat e um dos poetas de Black Mountain.

Fonte: http://www.zen-occidental.net


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2 comentários:

Anônimo disse...

Amo Gary Snyder e tenho nele um grande herói e como uma das minhas maiores influencias peço até que vcs permitam que eu coloque esse texto no blog do radiola Santa Rosa (um duo do qual eu faço parte).
Muito obrigado pelo maravilhoso texto.
Caio Bosco
radiolasantarosa.com.br

AGNOSTICOS RADICAIS disse...

Enquadro-me no anarcozen, tudo a ver com o texto do Gary!. Preciso me aprofundar mais nesse cara.
Sidney Seabra