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sábado, 21 de julho de 2007

BUDISMO ENGAJADO - TEXTOS CLÁSSICOS

Práticas Espirituais para Ativistas Sociais* - Primeira Parte
(1985)

Por Joanna Macy**

Para curar as nossas sociedades, as nossas psiques precisam curar-se também. Assombrados pelas desesperadas exigências do nosso tempo e esmagados por mais compromissos dos que podemos facilmente levar adiante, talvez possamos nos perguntar onde encontrar tempo e energias para disciplinas espirituais. Poucos de nós sentem-se livres para ir a claustros ou almofadas de meditação em busca de uma transformação pessoal.

Não precisamos afastar-nos do mundo ou passar longas horas em oração ou meditação solitárias para começarmos a despertar para o poder espiritual que está em nós. As atividades e encontros da nossa vida diária podem servir como ocasiões para este tipo de descoberta. Gostaria de compartilhar cinco exercícios simples que podem ajudar nisto.

Os exercícios – sobre a morte, a bondade amorosa, a compaixão, o poder mútuo e o mútuo reconhecimento – são adaptados da tradição budista. Como parte da nossa herança planetária, eles pertencem a todos nós. Não é necessário que possua algum sistema de crenças, apenas que esteja pronto para atender à imediatez da sua própria experiência. Eles serão mais úteis se lidos lentamente e com a mente em silêncio (umas poucas respirações profundas ajudarão) e se postos em prática diretamente na presença de outros. Se você os ler em voz alta para outros ou os colocar em uma fita, faça uma pausa de vários segundos cada vez que estiverem marcados três pontos (...), e quando estiverem marcados mais (......) deixe passar mais tempo, como é apropriado.

Meditação sobre a Morte

A maioria dos caminhos espirituais começam reconhecendo a transitoriedade da vida humana. Os cristãos medievais o mostraram no auto religioso Todo Homem. Dom Juan, o bruxo yaqui, ensinou que o guerreiro iluminado caminha com a morte em cima do ombro. Confrontar e aceitar a inevitabilidade da nossa morte nos liberta dos nossos apegos e nos permite viver com ousadia.

Uma meditação inicial no caminho budista envolve a reflexão sobre o dúplice fato de que: “a morte é segura” e “a hora da morte é incerta”. No mundo atual, a construção de armas nucleares, servindo de certa forma de mestre espiritual, faz esta meditação por nós, pois nos diz que podemos morrer juntos a qualquer momento, sem aviso prévio. Quando permitimos que a realidade desta possibilidade torne-se consciente, isto causa dor, mas também nos desperta com uma sacudida para a vivacidade da vida, para o seu caráter milagroso, elevando a nossa consciência da beleza e a unicidade de cada objeto e de cada ser.

Como prática ocasional na vida diária:

Olhe para a pessoa com quem estiver (seja ela um estranho ou um amigo). Dê-se conta de que esta pessoa vive em um planeta em perigo. Ele ou ela pode morrer em uma guerra nuclear ou pelos venenos que se espalham através do nosso mundo. Observe este rosto, único, vulnerável... Estes olhos ainda podem enxergar; não são buracos vazios... A pele ainda está intacta... Esteja consciente do seu desejo de que esta pessoa se liberte de tal sofrimento e horror, perceba a força do seu desejo... Continue respirando... Também permita que surja em você a idéia de que esta pode ser a última pessoa com que estiver quando morrer... este rosto o último que for ver... esta mão a última que toque... a que poderia se aproximar para ajudar, consolar, dar água... Abra-se para os sentimentos para com esta pessoa que aflorarem na sua consciência perante esta possibilidade... Abra-se para os níveis de afeto e conexão que se revelarem para você.

Meditação sobre a Bondade Amorosa – Metta

A Bondade Amorosa, ou Metta, é a primeira das quatro “Moradas do Buda”, também conhecidas como Brahmaviharas. A meditação para despertar e sustentar a bondade amorosa é um elemento básico do Movimento Sarvodaya Shramadana para o desenvolvimento comunitário no Sri Lanka, e minutos de silêncio são destinados para ela no começo de cada reunião. Os organizadores e os trabalhadores do povo acham que é útil para adquirir uma motivação para o serviço e para vencer sentimentos de hostilidade ou falta de adequação neles e para com os outros.

Recebi pela primeira vez as instruções sobre esta meditação de uma monja da tradição budista tibetana. Aqui apresento uma versão que adaptei para que seja usada no Ocidente.

Feche seus olhos e comece a relaxar, expirando para libertar a tensão. Agora focalize a sua atenção no fluxo normal da respiração, soltando todos os pensamentos estranhos enquanto observa passivamente a inspiração e a expiração.

Agora traga para a sua mente alguém que ame com muito carinho... na sua imaginação veja a cara desta pessoa amada... pronuncia silenciosamente o seu nome... sinta o seu amor por este ser, como uma correnteza de energia que provém do seu interior... Agora permita-se sentir o quanto deseja que esta pessoa esteja livre do medo, quão intensamente deseja que esta pessoa possa soltar-se dos seus apegos e inimizades, da confusão e a dor e das causas do sofrimento... Este desejo, com toda a sua sinceridade e força, é Metta, a grande bondade amorosa.

Continue sentindo este fluxo cálido de energia que vem do seu coração, contemple com a sua imaginação aqueles com quem compartilha a vida diária, membros da sua família, amigos próximos e colegas, as pessoas com quem vive e trabalha... Faça que apareçam em um círculo ao seu redor. Contemple-os um por um, pronunciando silenciosamente os seus nomes... e dirija para cada um deles a mesma correnteza de bondade amorosa... Entre estes seres pode haver alguns que lhe incomodem, com quem estiver em conflito ou em tensão. Com eles, especialmente, experimente o seu desejo de que cada um se liberte do medo, se liberte do ódio, se liberte da ambição e ignorância e das causas do sofrimento.

Agora permita que apareçam, em círculos concêntricos maiores, os seus amigos e conhecidos... Deixe que o feixe da bondade amorosa toque neles também, detendo-se nas caras que apareçam ao azar na sua imaginação. Com eles também, experimente o desejo que tem de que se libertem de apegos, medo, ódio e confusão, o quanto deseja que todos estes seres sejam felizes.

Para além deles, em círculos concêntricos ainda maiores, aparecem todos os seres com quem compartilha este tempo planetário. Mesmo que não os tenha encontrado, as suas vidas estão interconectadas de formas que vão além do conhecimento. Dirija também a estes seres a mesma correnteza poderosa da bondade amorosa. Experimente o seu desejo e intenção de que cada um deles se desperte do medo e do ódio, do apego e da confusão... que todos os seres sejam libertados do sofrimento.

Do mesmo jeito que na meditação budista antiga, dirijamos agora a bondade amorosa a todos os “fantasmas famintos”, os espíritos inconsoláveis que vagam no sofrimento, ainda presos no medo e a confusão. Que encontrem descanso... que possam descansar na grande bondade amorosa e na profunda paz que esta traz.

Com o poder da nossa imaginação vamos agora além do nosso planeta, para o universo, para outros sistemas solares, outras galáxias, outros campos búdicos. A correnteza de bondade amorosa não é afetada pela distância física e a dirigimos agora, como apontando um raio de luz, para todos os pontos de vida consciente... E para todos os seres sencientes, de todos os lugares, dirigimos nosso desejo sincero de que eles também se libertem do medo e a ambição, do ódio e a confusão e das causas do sofrimento... Que todos os seres sejam felizes.

Agora, como se estivéssemos lá longe nas distâncias interestelares, flutuamos e contemplamos ao nosso próprio planeta, a nossa própria casa... O olhamos suspendido na negrura do espaço, esta jóia de planeta azul e branco rodando sob a luz do seu sol... Vamos devagar até ele, ficando cada vez mais perto, mais perto, voltando a esta parte dele; esta região, este lugar... E, a medida que você chegar a este lugar, permita-se olhar para o ser que melhor conhece... para a pessoa que lhe tocou ser nesta vida... Conhece esta pessoa melhor do que qualquer outra, conhece as suas dores e as suas esperanças, conhece a sua necessidade de amor, sabe o quanto se esforça... Deixe que a cara deste ser, a sua própria cara, apareça na sua frente... Pronuncie o nome com o qual é chamado com amor... E experimente, com esta mesma correnteza energética de bondade amorosa, quão profundamente deseja que este ser esteja livre do medo, libertado do apego e o ódio, libertado da ignorância e a confusão e das causas do sofrimento... A grande bondade amorosa que lhe conecta com todos os seres está dirigida agora para você mesmo... conheça agora a sua plenitude.

A Respiração Através

Para a maioria das tradições espirituais, assim como também para a visão de mundo da teoria de sistemas, é básico reconhecer que não somos entidades separadas ou isoladas, mas partes integrais e orgânicas da vasta teia da vida. Como tais, somos neurônios de uma rede neural, através da qual surgem correntezas de consciência do que nos acontece, como espécie e como planeta. Neste sentido, a dor que sentimos pelo nosso mundo é um testemunho vivo da nossa interconexão com ele. Se negarmos esta dor, então nos tornamos como neurônios bloqueados e atrofiados, despidos do fluxo vital, debilitando assim o corpo maior do qual tomamos o nosso ser. Mas se a deixarmos se movimentar através de nós, então afirmamos o nosso pertencer; a nossa consciência coletiva aumenta. Podermos abrir-nos para a dor do mundo com a confiança de que não pode nos destruir nem nos isolar, já que não somos objetos que se possam quebrar. Somos padrões elásticos dentro da vasta rede do conhecimento.

Tendo sido condicionados a ver-nos como entidades separadas, competitivas e portanto frágeis, é preciso praticar para voltar a aprender este tipo de elasticidade. Uma boa forma de começar é praticar a simples franqueza, como no exercício da “respiração através”, adaptado de uma antiga meditação budista para o desenvolvimento da compaixão.

Fechando os olhos focalize a sua atenção na respiração. Não tente respirar de alguma forma especial, devagar ou longa. Simplesmente, observe como acontece a respiração para dentro e para fora. Note as sensações que a acompanham nas fossas nasais ou no lábio superior, no peito e no abdômen. Permaneça passivo e alerta, como um gato diante de uma touca de ratos.

Enquanto observa a respiração, note que acontece por si mesma, sem voluntariedade, sem a sua decisão de inspirar ou expirar cada vez... é como se você fosse respirado – respirado pela vida... Do mesmo jeito que todo o mundo neste quarto, nesta cidade, no planeta atual, é respirando, sustentado em uma vasta rede respirante de vida.

Agora visualize a sua respiração como um jato ou uma lufada de ar passando através de você. Olhe-o fluir subindo pelo nariz, descendo pela traquéia e indo até os seus pulmões. Agora dos seus pulmões passe-o através do seu coração. Imagine-o fluir através do seu coração e para fora, através de uma abertura, para reconectar-se com a grande teia da vida. Deixe que o fluxo respiratório, a medida que for lhe atravessando, apareça como uma grande laço que faz parte desta enorme teia, conectando-lhe com ela.

Agora abra a sua consciência para o sofrimento presente no mundo. Baixe todas as defesas e abra-se para o conhecimento deste sofrimento. Deixe-o vir de forma tão concreta quanto puder... imagens concretas dos teus próximos com dor e necessidades, com medo e isolados, em prisões, em hospitais, em prédios de apartamentos, em acampamentos de fome... não há necessidade de ficar em tensão por estas imagens, estão presentes e você em virtude da nossa interexistência. Relaxe e, simplesmente, deixe que aflorem... as muitas e incontáveis dificuldades dos nossos congêneres, e também dos nossos irmãos e irmãs animais, enquanto cruzam nadando os mares e voam no ar deste planeta doente... Agora inspire a dor, como grânulos escuros no jato de ar, subindo pelo nariz, descendo pela traquéia, os pulmões e o coração, e subindo outra vez para a rede mundial... não faça nada com os grânulos por enquanto, somente deixe-os passar através do seu coração.

Assegure-se que a correnteza flua através de você e para fora outra vez; não se agarre à dor... entregue-o por agora aos recursos curativos da grande teia vital.

Podemos dizer junto com Shantideva, o santo budista: “Deixe que todas as tristezas amadureçam em mim”. As ajudamos a amadurecer passando-as através dos nossos corações... fazendo um rico e substancioso adubo a partir de todo este sofrimento... de forma que possamos aprender com ele, enriquecendo nosso conhecimento maior, coletivo...

Se não se originarem imagens ou sentimentos e só houver inexpressividade, cinzenta e insensível, respire-a através. A própria insensibilidade é uma parte muito real do nosso mundo...

E se o que aflorar em você não for a dor alheia, mas o seu próprio sofrimento, então também respire-o através. A sua própria angústia é uma parte integral da dor do nosso mundo, e aflora com ele.

Se sentir uma dor no peito, uma pressão na caixa torácica, como se o coração fosse se quebrar, não há problema. O seu coração não é um objeto que possa se quebrar... Mas se acontecesse, dizem então que um coração que quebra pode conter o universo inteiro. O seu coração é tão grande assim. Confie nele. Continue respirando.

Esta meditação guiada serve para introduzir o processo da respiração através, o qual, uma vez que nos tenhamos familiarizado com ele, torna-se útil em muitas situações da vida diária que nos põem em confronto com informação dolorosa. Ao respirar as más notícias através de nós, em vez de subjugar-nos a elas, podemos fazer com que se fortaleça nosso sentimento de pertencermos à rede do ser. Nos ajuda a permanecermos alertas e abertos, seja lendo o jornal, recebendo uma crítica, ou simplesmente estando presentes com uma pessoa que sofre.

Para os ativistas que trabalham pela paz e a justiça, e para aqueles em contato mais direto com as dores do nosso tempo, esta prática ajuda a evitar o desgaste. Lembrar da natureza coletiva, seja da nossa problemática como do nosso poder, nos oferece uma poção curativa de humildade. Também pode nos salvar da soberba. Porque quando podemos tomar a dor do nosso mundo, aceitando-a como o preço do nosso afeto, não usamos os nossos atos para punir aqueles que estão menos envolvidos.

Continua...

Clique aqui para ler a segunda parte do texto, que contém os últimos dois exercícios propostos pela autora

Fonte: http://www.joannamacy.net

* A primeira versão deste texto foi publicada em The Path of Compassion: Writings on Socially Engaged Buddhism (ed. Fred Eppsteiner, Parallax Press, 1985) com o título Taking Heart: Exercices for Social Activists. A versão original em inglês encontra-se no site da autora com o título Spiritual Practices for Social Activists.

** A eco-filósofa Joanna Macy é estudiosa de Budismo, teoria geral de sistemas e ecologia profunda. Voz respeitada nos movimentos pela paz, a justiça e a ecologia, entremeia seus estudos com quatro décadas de ativismo. Criou uma inovadora estrutura teórica para a mudança social e pessoal, assim como uma eficaz metodologia de oficinas para a sua aplicação.


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