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domingo, 22 de julho de 2007

BUDISMO ENGAJADO - TEXTOS CLÁSSICOS

Práticas Espirituais para Ativistas Sociais* - Segunda Parte
(1985)

Por Joanna Macy**

Clique aqui para ler a primeira parte do texto, que contém os primeiros três exercícios propostos pela autora

A Grande Bola de Mérito

A compaixão, que é dor pela dor alheia, é só uma cara da moeda. A outra cara é a alegria com a alegria alheia – o que no Budismo é chamado de mudita.

No mesmo grau em que nos permitimos identificar-nos com o sofrimento alheio, também podemos identificar-nos com as forças dos outros. Isto é de extrema importância para se atingir um sentimento de suficiência e resistência, pois esta época tão desafiadora requer de nós mais entrega, resistência e coragem das que podemos sacar do nosso armazém individual. Podemos aprender a nutrir-nos dos outros neurônios da rede neural e enxergá-los com agradecimento e alegria, como se fosse “dinheiro no banco”.

Esta prática foi adaptada da Meditação de Júbilo e Transformação, um ensinamento ministrado em um texto budista escrito dois mil anos atrás, no começo da tradição Mahayana. A versão original pode-se encontrar no sexto capítulo do Sutra da Perfeição do Conhecimento em 8.000 Versos. Hoje a considero muito útil de duas formas.

A mais próxima da prática antiga é esta:

Relaxe e feche seus olhos. Abra a sua consciência para as pessoas com as quais compartilha esta época no planeta... neste povo... neste país... e em outras terras... Observe com a sua imaginação estas multidões... Agora deixe que a sua consciência se abra ainda mais, até abarcar todos os seres que alguma vez viveram... de todas as raças, credos e classes sociais, ricos, pobres, reis e pedintes, santos e pecadores... olhe para a vasta paisagem destes próximos expandindo-se na distância, como cadeias montanhosas sucessivas.

Agora considere o fato de que em cada uma destas inumeráveis vidas, algum ato de mérito foi executado. Por quanto limitada ou deprivada possa ter sido uma vida, houve algum ato de generosidade, um presente de amor, em ato de coragem ou de auto-sacrifício... no campo de batalha ou no lugar de trabalho, no hospital ou no lar... De todos os seres nestas multidões intermináveis surgiram atos de valor, de bondade, de ensinamento e de cura. Permita-se ver estes múltiplos e imensuráveis atos de mérito.

Agora imagine que pode varrer estes atos de méritos juntando-os... varra-os até fazer um monte diante de você... use as suas mãos... empilhe-os... empilhe-os numa grande pilha e olhe-a com felicidade e gratidão... Agora dê-lhe uns pequenos golpes até que forme uma esfera. É a Grande Bola de Mérito... agora pegue-a e pese-a nas suas mãos... regozije-se nela, sabendo que nenhum ato de bondade é perdido nunca. Permanece agora e sempre como um recurso presente... um meio para a transformação da vida... Então agora, com júbilo e gratidão, faça rodar esta grande bola... faça-a rodar... rodar... na cura do nosso mundo.

Como podemos aprender da ciência contemporânea e visualizar no modelo holográfico da realidade, as nossas vida se interpenetram. Na fluido tapete do espaço-tempo, não há distinção na raiz entre o eu e o outro. Os atos e as intenções dos outros são como sementes que podem germinar e dar frutos ao longo das nossas próprias vidas, quando os trazemos para a consciência e dedicamos, ou “fazemos rodar”, esta consciência para o nosso próprio empoderamento. Thoreau, Gandhi, Martin Luther King, Dorothy Day e um sem número de heróis e heroínas anônimas dos nossos dias, todos podem ser partes da nossa Bola de Mérito, da qual podemos trazer inspiração e resistência. Outras tradições apresentam noções semelhantes, como a “nuvem de testemunhas” da qual falou São Paulo ou o Tesouro de Méritos da tradição católica.

A segunda versão da meditação da Bola de Mérito, mais aplicável no dia a dia, nos ajuda a abrir os poderes das pessoas que nos rodeiam. Está em direta contraposição com a noção hierárquica de poder comumente aceita, como algo que se possui pessoalmente e se exerce sobre os outros. O exercício nos prepara para trazer atenção expectante para os nossos encontros com outros seres, para ver com genuína abertura e curiosidade de que maneira eles podem realçar a nossa Bola de Mérito. Podemos jogar este jogo silencioso quando vemos alguém na nossa frente no ônibus ou na mesa de negociações. É especialmente útil quando lidamos com pessoas com as quais podemos estar em conflito.

O que esta pessoa acrescenta à minha Grande Bola de Mérito? Que presentes do intelecto podem enriquecer nosso armazém comum? Que reservas de teimosa resistência ela ou ele pode oferecer? Que vôos de fantasia ou poderes de amor estão à espreita além destes olhos? Que bondade ou coragem estão escondidos detrás destes lábios, que poder curativo nestas mãos?

Então, como no exercício da respiração através, podemos abrir-nos para a presença destas forças, inspirando a nossa consciência delas. A medida que a nossa consciência aumenta, experienciamos a nossa gratidão por eles e a nossa capacidade de compartilhar...

Com freqüência deixamos que as nossas percepções dos poderes dos outros nos façam sentir inadequados. Ao lado de um colega eloqüente, podemos sentir-nos inábeis com as palavras; na presença de um atleta podemos sentir-nos fracos e desajeitado; e podemos acabar ressentidos tanto com nós mesmos como com a outra pessoa. À luz da Grande Bola de Mérito, porém, os presentes e a boa sorte dos outros aparecem não como desafios competidores, mas como recursos que podemos honrar e ficarmos felizes por eles. Podemos aprender a brincar de detetives, procurando tesouros para o realce da vida mesmo no material mais improvável. Como o ar, o sol e a água, eles fazem parte do nosso bem comum.

Além de liberar-nos do grampo mental da inveja, esta prática espiritual oferece duas outras recompensas. A primeira é o prazer pela nossa própria acuidade, a medida que a nossa habilidade para detectar méritos aumenta. A segunda é a resposta dos outros que, embora não estejam cientes do jogo que estamos jogando, sentem algo nas nossas maneiras que os convida a manifestar mais da pessoa que podem ser.

Aprendendo a olhar-nos uns aos outros

Este exercício deriva da prática budista das Brahma-viharas, também cohecida como as Quatro Moradas do Buda, que são a bondade amorosa, a compaixão, a alegria pela alegria dos outros e a equanimidade. Adaptada para ser usada de forma interativa em um contexto social, ajuda a ver-nos uns aos outros mais verdadeiramente e a experienciar as profundezas das nossas interconexões.

Nas oficinas a apresento como meditação guiada com os participantes sentados frente a frente em duplas ou parando para encontrar-se uns aos outros silenciosamente enquanto se movimentam pela sala. No final, os encorajo a usá-la integralmente ou em parte quando voltarem para as suas vidas diárias. É um excelente antídoto contra o enfado quando os nosso olhos caem em cima de uma outra pessoa, seja no metrô ou em um balcão. Carrega aquele movimento de beleza e descoberta. É também útil quando lidamos com gente que tendemos a não tomar em consideração ou a não gostar; quebra nossas formas habituais de vê-los. Quando é usada desta maneira, como meditação em ação, não é preciso, naturalmente, olhar muito ou profundamente nos olhos do outro, como em um exercício guiado. Um relance aparentemente casual é suficiente.

A versão guiada em grupo desenvolve-se assim:

Observem-se uns aos outros silenciosamente e relaxem. Realizem um par de respirações profundas, concentrando-se nela e soltando qualquer tensão... Se se sentir desconfortável ou com urgência de rir ou olhar para outro lugar, apenas note-o gentilmente, com paciência, e volte a concentrar a sua atenção, quando puder, na presença viva daquele ser. Ele ou ela é único, diferente de qualquer outro que já viveu ou viverá...

A medida que olhar para esta pessoa, abra a sua consciência para os poderes que residem nela... para os seus presentes e forças e para as potencialidades. Neste ser residem imensuráveis reservais de coragem e inteligência... de paciência, resistência, sagacidade e sabedoria... Lá há presentes dos quais esta própria pessoa pode não estar ainda consciente... Considere o que estes poderes podem fazer pela cura do nosso planeta, se se acreditasse neles e fossem postos em ação. A medida que considere isto, sinta o seu desejo de que esta pessoa esteja livre do medo... Experiencie o quanto você quer que ela ou ela esteja livre da cobiça, libertado do ódio e da amargura e das causas do sofrimento... Saiba que o que você está experienciando agora é a grande bondade amorosa...

Agora, a medida que olhar para esta pessoa, abra a sua consciência para a dor que conheceu... Aqui, como em todas as vidas humanas, há amargura, desilusões, fracassos e perdas, solidão, abusos... Há feridas que esta pessoa pode não ter nunca contado a outro ser vivente... A medida que se abrir para o seu sofrimento, sabe que você não pode removê-lo. Não tem este poder. Mas pode ser uno com ele. A medida que experiência o seu preparo para ser uno com o sofrimento de outro, sabe que o que está experienciando é a grande compaixão... É excelente para a cura do nosso mundo...

Agora, a medida que você estiver na presença desta pessoa, considere o quanto seria bom que vocês trabalhassem juntos – em um projeto conjunto, visando um objetivo comum... Imagine como seria... planejar, conspirar, assumir riscos juntos... cada um ajudando o outro a encontrar a sua força e criatividade, celebrando os seus sucessos, consolando-se um ao outro quando sofrem reveses, perdoando-se um ao outro quando cometem erros... e simplesmente estando ali um para o outro... A medida que se abrir para esta possibilidade, ao que está se abrindo é para a grande riqueza: o regozijo para os poderes de cada outra pessoa, a alegria para a alegria de cada outra pessoa...

Por último, deixe a sua consciência mergulhar profundamente em você como uma pedra, penetrando além do nível do que as palavras podem expressar, para as vastas correntezas de relacionamentos que jazem debaixo de qualquer experiência. É a teia da vida que suporta e entrelaça as nossas vidas através de todo espaço e tempo... Olhe para o ser na sua frente como se olhasse para o rosto de alguém que, em outra época, em outro lugar, foi seu amante ou seu inimigo, um dos seus pais ou dos seus filhos... E agora você se reencontra com o este limiar do tempo... E sabe que as suas vidas estão tão inextricavelmente entrelaçadas como células nervosas na mente de um grande ser... Para fora desta grande rede você não pode cair. Nenhuma estupidez ou fracasso ou covardia poderão nunca lhe separar desta rede viva, porque, o está vendo, isto é que você é... Descanse neste conhecimento. Esta é a Grande Paz. Fora dela você pode agir, pode arriscar qualquer coisa... e deixe que cada encontro seja uma volta ao lar da sua verdadeira natureza... Certamente o é.

Fonte: http://www.joannamacy.net

* A primeira versão deste texto foi publicada em The Path of Compassion: Writings on Socially Engaged Buddhism (ed. Fred Eppsteiner, Parallax Press, 1985) com o título Taking Heart: Exercices for Social Activists. A versão original em inglês encontra-se no site da autora com o título Spiritual Practices for Social Activists.

** A eco-filósofa Joanna Macy é estudiosa de Budismo, teoria geral de sistemas e ecologia profunda. Voz respeitada nos movimentos pela paz, a justiça e a ecologia, entremeia seus estudos com quatro décadas de ativismo. Criou uma inovadora estrutura teórica para a mudança social e pessoal, assim como uma eficaz metodologia de oficinas para a sua aplicação.


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