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quarta-feira, 1 de agosto de 2007

REFLEXÕES BUDISTAS SOBRE A REALIDADE CONTEMPORÂNEA

O que diria a Osama Bin Laden*
2001

O monge Zen Thich Nhât Hanh explica como a escuta é o primeiro passo para a paz

Entrevista de Anne A. Simpkinson

Thich Nhât Hanh é um monge vietnamita da tradição Zen que trabalhou incansavelmente pela paz durante a guerra do Vietnã, reconstruindo aldeias destruídas pelas hostilidades. Depois de um tour de palestras contra a guerra nos Estados Unidos, não lhe foi permitido voltar ao seu país e então estabeleceu-se na França. Em 1967 o Reverendo Martin Luther King Jr. o indicou como candidato para o Prêmio Nobel da Paz. Atualmente, é conhecido a nível internacional pelos seus ensinamentos e pelos escritos sobre a plena consciência, junto ao seu trabalho em prol de um “Budismo Socialmente Engajado”, uma chamada à ação social baseada nos princípios budistas. Thây, como é afetuosamente chamado pelos seus seguidores, nos fez conhecer as suas reflexões sobre a forma como a América deveria responder aos ataques terroristas. Esta entrevista vai fazer parte de um livro em curso de publicação intitulado Out of the Ashes: A Spiritual Response to America’s Tragedy, que será publicado pela Beliefnet e a Rodale Press.

Se pudesse falar com Osama Bin Laden, o que diria-lhe? E se pudesse falar para o povo americano, o que sugeriria que fizesse nestas circunstâncias, como indivíduos e como nação?

Se me fosse concedida a oportunidade de ficar cara a cara com Osama Bin Laden, a primeira coisa que faria seria escutar. Tentaria compreender porquê agiu de uma forma tão cruel. Tentaria compreender todos os sofrimentos que o levaram à violência. Escutar desta forma poderia não ser fácil, então deveria ficar calmo e lúcido. Precisaria ter perto de mim diversos amigos fortes na prática da escuta profunda, do escutar sem reagir, sem julgar e condenar. Deste jeito, criaria-se uma atmosfera de apoio ao redor desta pessoa e das ligadas a ela, de forma que poderiam realmente experimentar uma partilha, confiar que estejam sendo escutadas de verdade.

Depois de ter escutado por algum tempo, poderíamos precisar de uma interrupção para permitir que o que foi dito entre na nossa consciência. Só quando nos sentirmos calmos e lúcidos, poderemos dar uma resposta. Responderemos ponto por ponto ao que foi dito. Responderemos de forma gentil, mas firme, de forma a ajudá-los a descobrir as suas interpretações erradas, para que possam acabar com os atos violentos de sua própria vontade.

No que diz respeito ao povo americano, sugeriria fazer tudo quanto for possível para restabelecer a calma e a lucidez antes de responder à situação que se criou. Responder demasiado rapidamente, antes de se ter uma boa compreensão da situação, pode ser muito perigoso.

A primeira coisa que podemos fazer é apagar as chamas da raiva e o ódio que são tão fortes em nós. Como falei antes, é de importância crucial olhar para a forma como alimentamos o ódio e a violência dentro de nós e adotar medidas imediatas para eliminar o nutrimento do nosso ódio e a nossa violência.

Quando reagimos dominados pelo medo e o ódio, não temos ainda uma compreensão profunda da situação. A nossa ação será somente uma forma muito rápida e superficial de responder à situação e não produzirá um verdadeiro benefício e cura. Mas se aguardarmos e acompanharmos o processo de acalmar a nossa raiva, olhando profundamente dentro da situação e escutando com uma grande vontade de compreender as raízes do sofrimento que são as causas das ações violentas, então finalmente teremos elementos suficientes para responder de uma forma tal que a cura e a reconciliação poderão ser realizadas por todas as pessoas envolvidas.

Na África do Sul, a Comissão pela Verdade e a Reconciliação fez umas tentativas para chegar a este resultado. Todas as partes envolvidas na violência e na injustiça aceitaram se escutar reciprocamente em um ambiente calmo e confortável, olhar profundamente juntas para as raízes dos atos violentos e procurar soluções compartilhadas para responder às diferentes situações. A presença de fortes líderes espirituais é de grande ajuda para criar e manter um tal ambiente. Podemos inspirar-nos nestes modelo para resolver os conflitos que estão surgindo exatamente neste momento; não precisamos esperar muitos anos para colocá-lo em prática.

Você experimentou pessoalmente a devastação causada pela guerra no Vietnã e trabalhou para pôr fim ao conflito lá. O que pode dizer às pessoas dilaceradas pela dor e iradas porque perderam seres queridos nos ataques terroristas?

Eu perdi meus filhos e minhas filhas espirituais durante a guerra, quando estavam penetrando na região dos combates para tentar salvar os que estavam debaixo das bombas. Alguns foram mortos pela guerra e outros foram assassinados por quem pensava erroneamente que estavam apoiando a parte adversária. Quando olhei para os quatro cadáveres trucidados dos meus filhos espirituais assassinados de uma forma tão violenta, sofri profundamente.

Compreendo o sofrimento daqueles que perderam seus seres queridos nesta tragédia. Em situações de grande perda e dor, precisei retornar à minha calma para restaurar a minha lucidez e a capacidade de compreensão e compaixão do meu coração. Com a prática do olhar profundamente, entendi que se respondo à crueldade e à dor com a crueldade, a injustiça e o sofrimento não podem senão aumentar.

Quando soubemos do bombardeio da aldeia de Bentra no Vietnã, onde foram destruídas 300.000 casas, e os pilotos disseram aos jornalistas que tinham destruído a aldeia para salvá-la, eu fiquei traumatizado e transtornado pelo medo e pela dor. Então praticamos o caminhar de forma calma e gentil sobre a terra, para voltar a obter a calma da mente e a paz do coração.

Embora seja um grande desafio manter a nossa abertura neste momento, é de importância crucial que não respondamos de nenhuma forma até que não tivermos recuperado a calma e a clareza indispensáveis para enxergar a realidade da situação. Nós sabíamos que responder com a violência e o ódio teria prejudicado somente a nós mesmos e as pessoas ao nosso redor. Então nos dedicamos à meditação para estarmos em condição de olhar em profundidade no sofrimento das pessoas que nos infligiam violência, para compreendê-las de forma mais profunda e para compreendermos a nós mesmos de forma mais profunda. Graças a esta compreensão estivemos em condição de produzir compaixão e de aliviar tanto o nosso sofrimento como o sofrimento da outra parte.

Qual é a “coisa correta” a ser feita para responder aos ataques terroristas? Deveríamos procurar justiça através de uma ação militar? Através de ações judiciárias? A intervenção militar e/ou a retaliação é justificada se pode evitar a futura matança de inocentes?

Cada violência é uma injustiça. O foco do ódio e da violência não pode ser extinto acrescentando mais ódio e violência. O único antídoto contra a violência é a compaixão. E do que é feita a compaixão? É feita de compreensão. Quando não há compreensão, como podemos sentir compaixão, como podemos começar a aliviar o grande sofrimento que temos diante dos nossos olhos? A compreensão é a verdadeira base sobre a qual construímos a nossa compaixão.

Como podemos chegar à compreensão e o discernimento necessários para nos guiar através destes momentos de imenso desafio que estamos enfrentando agora nos Estados Unidos? Para sentir compaixão precisamos encontrar meios de comunicação que nos permitam escutar aqueles que estão invocando a nossa compreensão de forma tão desesperada – porque um tal ato de violência é um pedido desesperado de atenção e de ajuda.

Como escutar de um jeito calmo e claro, de tal forma que não mate de antemão as possibilidades de desenvolvimento da compreensão? Precisamos avaliar esta situação como nação: como podemos desenvolver condições tais que permitam que se verifique a escuta profunda, de forma que a nossa resposta à situação possa surgir da calma e da clareza da nossa mente. A clareza é um grande oferecimento que podemos fazer neste momento.

Tem pessoas que só querem uma coisa: vingança. Nas escrituras budistas, o Buda diz que respondendo ao ódio com o ódio só se obtém um aumento do ódio. Mas se usarmos a compaixão para abraçar aqueles que nos prejudicaram, seria um passo importante para desativar as bombas que estão nos nossos corações e nos deles.

Mas como fazer brotar uma gota de compaixão que possa apagar o fogo do ódio? Sabe, a compaixão não se vende no supermercado. Se vendessem a compaixão, só teríamos que levá-la para casa e teríamos resolvido o problema do ódio e da violência no mundo muito facilmente. Mas a compaixão só pode ser produzida no nosso coração graças à prática.

Os Estados Unidos estão ardendo nas chamas do ódio. É por isso que precisamos dizer aos nossos amigos cristãos: “vocês são os filhos de Cristo”. Precisam voltar para vocês mesmos e olhar profundamente e descobrirão porquê esta violência aconteceu.

Porquê há tanto ódio? O que tem debaixo de toda esta violência? Porquê odeiam até o ponto de chegar a sacrificar as suas próprias vidas e infligir um sofrimento tão grande a outras pessoas? Porquê estes rapazes novos, cheios de vitalidade e de força, escolheram perder a própria vida, cometer uma tal violência? É isso que precisamos entender.

Precisamos encontrar uma forma de parar a violência, claro. Se for o caso, precisamos colocar os responsáveis na prisão. Mas o importante é olhar profundamente e perguntar: “Porquê isso ocorreu? Que responsabilidades temos nós pelo que aconteceu?”. Talvez eles nos entendam mal. Mas o que é que os levou a um nível tal de incompreensão que nos odeiam tanto?

O método do Buda é olhar profundamente para ver a fonte do sofrimento; a fonte da violência. Se dentro de nós há violência, qualquer ação pode fazer explodir esta violência. A energia do ódio e da violência pode ser muito grande e quando a vemos em outras pessoas sentimos por elas. Quando sentimos por elas, a gota da compaixão brotou nos nossos corações e nos sentimos muito mais felizes e em paz com nós mesmos. Esta empatia produz o néctar da compaixão dentro de nós.

Você vai para um mosteiro justamente para aprender a fazer isso, para que sempre que sofrer e estiver com raiva saiba como olhar profundamente, para que a lágrima da compaixão possa brotar do seu coração e expulsar a febre da raiva. Só a lágrima da compaixão pode afastar as chamas do ódio.

Precisamos olhar profundamente e com honestidade para a nossa situação atual. Se formos capazes de ver as fontes do sofrimento em nós mesmos e nos outros, poderemos começar a inverter o ciclo do ódio e da violência. Quando a nossa casa estiver pegando fogo, precisamos antes de mais nada apagar o fogo e depois procurar as causas. Do mesmo jeito, se primeiro apagarmos a raiva e o ódio no nosso coração, teremos a possibilidade de analisar a situação profundamente, com clareza e discernimento para determinar todas as causas e condições que contribuíram para o ódio e a violência que estamos experimentando dentro de nós mesmos de no nosso mundo.

Acredita na existência do Mal? E, se for assim, consideraria os terroristas pessoas malvadas?

O Mal existe. Deus também existe. O Mal e Deus são as nossas duas caras. Deus é esta grande compreensão, este grande amor dentro de nós. É o que é chamado também de Buda, a mente iluminada que é capaz de enxergar além da ignorância.

O que é o Mal? É quando a cara de Deus, a cara do Buda dentro de nós está escondida. Corresponde a nós escolher se o lado do Mal predomina ou se o lado de Deus e do Buda resplandece. Mas mesmo se o lado da grande ignorância, do Mal, em um determinado momento possa manifestar-se de forma mais intensa, isto não significa que Deus não esteja lá.

Na Bíblia isso é dito claramente: “Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Isto significa que um ato malvado é um ato de grande ignorância e incompreensão. Talvez haja muitas percepções erradas por trás de um ato malvado; precisamos entender que a ignorância e a incompreensão são as raízes do mal. Cada ser humano contém dentro de si todos os elementos de uma grande compreensão, de uma grande compaixão e também ignorância, ódio e violência.

No seu novo livro Aprendendo a Lidar com a Raiva, você da um exemplo de “escuta compassiva” como um instrumento para curar as famílias. Este instrumento pode ser usado a nível nacional e, neste caso, como funcionaria?

No verão passado um grupo de palestinos e israelenses veio a Plum Village, o centro de meditação onde vivo no Sul da França, para aprender e praticar as artes da escuta profunda e do discurso amoroso. Cada verão, cerca de 1.600 pessoas de mais de uma dúzia de países chegam a Plum Village para escutar e aprender como trazer paz e compreensão na própria vida cotidiana.

O grupo de palestinos e israelenses participou do programa diário de meditação andando, meditação sentada e refeições silenciosas, e seguiu também um treinamento sobre como escutar e falar-se um ao outro de forma a tornar possível uma maior paz a compreensão entre os seus membros, seja como indivíduos que como nações.

Com a guia e o apoio dos monges e das monjas, eles sentaram-se e escutaram-se reciprocamente. Quando uma pessoa falava, ninguém a interrompia. Cada um praticava a plena consciência da própria respiração e da própria escuta de forma tal que a outra pessoa se sentia ouvida e compreendida. Quando uma pessoa falava, eles evitavam usar palavras de aprovação, ódio ou condenação. Falavam em uma atmosfera de confiança e respeito. Graças a estas conversações os participantes palestinos e israelenses conseguiram realmente compreender que ambas as partes sofriam pelo medo. Apreciaram a prática da escuta profunda e se puseram de acordo entre eles para compartilhar com outros o que tinham aprendido, depois da volta aos seus respectivos países.

Nós recomendamos que palestinos e israelenses falassem dos seus sofrimentos, medos e desespero em um fórum público, para que o mundo inteiro possa escutar. Poderíamos todos escutar sem julgar, sem condenar, para compreender a experiência de ambas partes. Isto prepararia o terreno de compreensão apropriado para a abertura de conversações de paz.

A mesma situação existe agora entre o povo americano e o das nações árabes e islâmicas. Há uma grande incompreensão e uma grande falta daquele tipo de comunicação que prejudica a nossa capacidade de resolver as dificuldades de forma pacífica.

A compaixão ocupa um papel relevante dentro do Budismo e da prática budista. Mas, neste exato momento, parece impossível fazer apelo à compaixão para os terroristas. É realista pensar que as pessoas possam sentir uma autêntica compaixão agora?

Sem compreensão, a compaixão é impossível. Quando você compreende o sofrimento dos outros, não precisa se esforçar para sentir compaixão, a porta do seu coração vai se abrir naturalmente. Todos os terroristas eram muito novos, porém sacrificaram a própria vida pelo quê? Porquê o fizeram? Que tipo de sofrimento profundo há aqui? Será necessária uma escuta profunda e um olhar profundo para compreendê-lo.

Se ter compaixão nesta situação é cumprir um ato de perdão. Antes de mais nada, podemos abraçar o sofrimento, tanto fora dos Estados Unidos como no seu interior. Precisamos cuidar das vítimas aqui, no nosso país, mas ter compaixão também pelos terroristas e as suas famílias, porque eles também são vítimas da ignorância e do ódio. Desta forma podemos realmente praticar a não discriminação. Não há nenhuma necessidade de esperar muitos anos ou décadas para realizar a reconciliação e o perdão. Precisamos agora de um despertador, para não permitir que o ódio esmague os nossos corações.

Acredita que as coisas acontecem por uma razão? Se for assim, qual foi a razão pelos ataques aos Estados Unidos?

A razão profunda da nossa atual situação reside nos nossos modelos de consumo. Os cidadãos norte-americanos consomem 60% dos recursos naturais mundiais de energia, mas são apenas o 6% da população mundial. Na América as crianças assistiram a 100.000 atos de violência na televisão antes de ter terminado a primeira série. Uma outra razão da atual situação é a nossa política externa e a falta de escuta profunda nas nossas relações. Nós não usamos a escuta profunda para compreender o sofrimento e as verdadeiras necessidades das pessoas e das outras nações.

Qual acredita que seja a resposta espiritual mais eficaz para esta tragédia?

Podemos começar exatamente neste instante a meditar para acalmar a nossa raiva, olhando profundamente para as raízes do ódio e da violência na nossa sociedade e no nosso mundo, e a escutar de forma compassiva para ouvir e compreender o que ainda não temos a capacidade de ouvir e compreender. Quando a gota de compaixão começar a se formar nos nossos corações e nas nossas mentes, começaremos a desenvolver respostas concretas para a nossa situação. Quando escutarmos ou olhamos profundamente, poderemos começar a desenvolver a energia da fraternidade e da irmandade entre todas as nações, o que representa o mais profundo legado espiritual de todas as tradições religiosas e culturais. Destra forma, a paz e a compaixão no mundo irão crescendo dia após dia.

Desenvolver a gota da compaixão no nosso próprio coração é a única resposta espiritual efetiva para o ódio e a violência. Esta gota de compaixão será o resultado de acalmarmos a nossa raiva, de olharmos profundamente para as raízes da nossa violência, de escutarmos profundamente e de compreendermos o sofrimento daqueles que estão envolvidos nos atos de ódio e violência.

* Texto publicado por primeira vez na edição de outubro de 2001 do Changemakers Journal

Clique aqui para ler a versão original em inglês do texto no site www.beliefnet.com


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