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quinta-feira, 12 de junho de 2008

REFLEXÕES BUDISTAS SOBRE A REALIDADE CONTEMPORÂNEA

Contribuições budistas para a construção de uma sociedade justa, democrática e civil


Por Thich Nhât Hanh
* (Thây)

Oferecido e traduzido por Denise KatoSangha Plena Consciência, São Paulo


Este 5°.
Dia do Vesak promovido pelas Nações Unidas é uma oportunidade para nos reunirmos como uma família, como uma comunidade nutrida pela sabedoria do Buda. Que possamos sentir a alegria de estarmos juntos e percebermos que, se soubermos nos nutrir desta fonte de grande sabedoria, poderemos mudar nossa sociedade e melhorar a qualidade de vida em nosso planeta. E poderemos fazê-lo como uma comunidade.


O principal tema para reflexão este ano é: as Contribuições Budistas para a Construção de uma Sociedade Justa, Democrática e Civil. Este encontro não deve se tornar apenas mais uma conferência para apresentarmos lindas idéias. Os insights coletivos e as decisões que tomarmos juntos deverão ser adotados em nossa vida diária e aplicados à nossa sociedade. Através do apoio contínuo da sangha, da prática da plena consciência, concentração e insight, podemos compartilhar nossa sabedoria, articular nossos caminhos de ação da forma mais clara possível e assumir um compromisso de levarmos nossa vida diária à luz desta sabedoria, seja como indivíduos, como uma comunidade, aldeia, cidade ou país. O Manifesto 2000 da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, n. d. r.) para uma Cultura de Paz e Não-Violência foi assinado por mais de setenta e cinco milhões de pessoas, inclusive muitos chefes de estado, porém não garantiu que aqueles que o assinaram recebessem o apoio necessário para colocar os seis pontos do Manifesto
em prática. Não basta saber que o caminho é lindo. Precisamos trilhar este caminho.


Todos sabemos que a construção de uma sociedade justa, democrática e civil não depende apenas daquilo que fazemos, mas acima de tudo, daquilo que somos. Temos que ser a própria mudança antes que possamos fazer mudanças em nossa sociedade. Estar em paz é a base para gerar paz. Sem transformação e cura pessoais não seremos suficientemente calmos e compassivos para usar a fala amorosa e a escuta profunda, e nossos esforços não ajudarão a mudar nossa sociedade. Assim, nossa prática pessoal e a prática de nossa sangha são essenciais para a mudança que queremos ver no mundo.


1. Guerra, Conflito e Cura


As raízes da guerra e do conflito estão dentro de nós. Temos que reconhecer as aflições dentro de nós, abraçá-las e transformá-las: raiva, ódio, discriminação, orgulho, desespero. A prática consiste em olhar profundamente suas raízes, compreendê-las e aprender a transformá-las. Precisamos dar ouvidos ao nosso próprio sofrimento e ao sofrimento de nossa família, comunidade e nação. Devemos ser capazes de ajudar uns aos outros a reconhecermos que essas aflições existem em cada um de nós e que ao longo de nossas vidas temos permitido o desenvolvimento dessas aflições. Assim, cada um de nós deve assumir o compromisso de não regar as sementes de violência, ódio, discriminação e desespero que estão
em nós. Em nossos relacionamentos com nossos cônjuges, ou entre pai e filho, mãe e filha, irmão e irmã, precisamos ajudar uns aos outros na prática, aprendendo sempre a ouvir o outro com compaixão, sempre utilizando a fala amorosa para ajudá-lo a reconhecer as aflições que carrega dentro de si. Também devemos usar a fala amorosa para regar as sementes de compreensão, compaixão, alegria e irmandade inerentes ao outro. Devemos nos ajudar para que possamos trazer a cura a nossas relações pessoais antes que possamos ajudar a curar a humanidade e a Terra. A cura é possível através de cada respiração, cada passo, cada pensamento, cada palavra e através dos atos mais simples, como sorrir para alguém.


A Terra está padecendo, nossa sociedade está padecendo e há tanto desespero e violência. Práticas budistas, como o Pensamento Correto (ou seja, pensar com base na não-discriminação, compaixão e compreensão), Fala Correta, Ação Correta e Modo de Vida Correto são cruciais para a cura de que todos necessitam. Os jovens devem aprender a praticar o Nobre Caminho Óctuplo em suas famílias e nas escolas. As Negociações de Paz terão êxito apenas se ambas as partes em conflito tiverem compreensão mútua e souberem como fazer uso da escuta profunda e da fala amorosa. E este tipo de treinamento deve começar nos níveis mais básicos da educação. É isto que entendemos por educação da paz e é a forma de sairmos da guerra e da violência.


2. A Contribuição do Budismo à Justiça Social


O Manifesto de 2000 da UNESCO contém 6 pontos e equivale à prática dos Cinco Treinamentos da Plena Consciência. Tanto os seis pontos quanto os Cinco Treinamentos abordam as questões de paz e justiça social no nível mais fundamental. Na tradição budista, após receber os Cinco Treinamentos da Plena Consciência, a pessoa que os tomou deve recitá-los a cada duas semanas e participar de sessões de estudo e discussões do Dharma para entrar mais a fundo em seus significados e para descobrir melhores formas de colocá-los em prática na vida diária, tanto na família como na sociedade. Os Cinco Treinamentos nos ajudam a viver com mais simplicidade, dando-nos o tempo e a energia necessários para proteger a vida e ajudar aqueles que precisam realmente de nós. É possível ser feliz com uma vida simples, com tempo para tomarmos conta de nós mesmos, de nossa família, daqueles que sofrem e, ao mesmo tempo, promovermos uma justiça social maior. Muitos de nós correm atrás da fama, do poder, do sexo e do dinheiro durante toda a vida, mas mesmo aqueles que têm essas quatro coisas em abundância continuarão sofrendo muito se não tiverem compreensão e amor.


Quando praticamos o segundo treinamento da generosidade para oferecermos nosso tempo, energia e recursos materiais àqueles que necessitam realmente deles, nossa vida torna-se repleta de significado e realização. O Budismo e a prática dos Cinco Treinamentos têm muitos meios para levar mais justiça e compaixão à sociedade. Com plena consciência, compaixão e compreensão dentro de nós, agimos naturalmente, levando a cura a nossas relações, comunidade e sociedade. Devemos estar cientes das situações de injustiça, como desigualdade entre gêneros e a exclusão da mulher, a opressão de minorias, a exploração das crianças e dos pobres. Há muitas formas de falarmos sobre injustiça e de chamarmos a atenção daqueles que sofrem e não são ouvidos.


Podemos organizar passeatas para promover a paz, pois cada passo é um movimento em direção à paz. Não se trata de uma demonstração ou de um protesto, mas sim de uma verdadeira manifestação de paz, de irmandade. Podemos escrever declarações de amor a nossos políticos e representantes. Nossa sangha de Plum Village ofereceu retiros de plena consciência para policiais, membros do Congresso dos EUA, artistas e cineastas, ambientalistas, psicoterapeutas, líderes do comércio, assim como israelenses e palestinos. Os Cinco Treinamentos Budistas da Plena Consciência e os seis pontos do Manifesto de 2000 são a verdadeira prática da compreensão e do amor. São o caminho para uma sociedade justa.


3. Budismo Engajado e Desenvolvimento


O Budismo Engajado é o primeiro de todos os tipos de Budismo praticado ao longo de todo o dia, ininterruptamente, vivendo em plena consciência e concentração quando caminhamos, dirigimos, cozinhamos, vamos ao banheiro, etc. O Budismo Engajado também é a nossa prática dos Cinco Treinamentos da Plena Consciência dentro de nosso ambiente social. Praticamos a compreensão e o amor em nossa família, escola, local de trabalho, hospital, prisão, fábrica, exército, prefeitura e governo. Não precisamos usar termos budistas para trazer a prática à nossa vida diária.


A presença de plena consciência, concentração e insight, o espírito do interser, a não-discriminação, compreensão e compaixão são a própria presença do Budismo. Não temos que converter as pessoas ao Budismo, mas podemos inspirá-las a viver e trabalhar de acordo com este caminho nobre. Podemos encontrar felicidade no desenvolvimento da compreensão e da compaixão. Nosso índice para medir a felicidade, o sucesso e o progresso de nossa nação não deve ser o Produto Interno Bruto ou nosso poder aquisitivo, mas sim nosso nível de compreensão e compaixão.


Os quatro Brahmaviharas (bondade amorosa, compaixão, alegria e equanimidade) são energias ilimitadas que podem ser desenvolvidas para nossa felicidade e para a felicidade do mundo. Essas energias jamais ocorrem
em excesso. A prática da produção e do consumo conscientes (o Quinto Treinamento da Plena Consciência) garante que sempre seguiremos o caminho do desenvolvimento sustentável. A verdadeira felicidade deve ser a base de nossas políticas de produção, consumo e desenvolvimento. Nossa sabedoria é o interser, a Visão Correta Budista do mundo, no sentido de que tudo depende de todo o resto para se manifestar. Se outras espécies não podem sobreviver, então os humanos também não sobreviverão. Proteger o ambiente é proteger a nós mesmos. Não somos apenas nosso corpo e espírito, somos também nosso ambiente. Nosso ambiente é a retribuição de nossa ação coletiva (karma). Viver com simplicidade, desenvolver a compreensão e o amor, cuidar de nosso ambiente, assumir um compromisso em prol do desenvolvimento sustentável - em outras palavras, seguir o caminho do Buda.


4. A Resposta Budista à Mudança Climática


A queima de combustíveis fósseis e o desmatamento de florestas como formas de suprir nossos meios de transporte, e o consumo de carne e laticínios são as principais causas do aquecimento global. Segundo um estudo das Nações Unidas publicado em
2007, a solução é reduzir a produção de carne em 50% e dirigir carros com combustível mais limpo e somente quando estritamente necessário. Muitos budistas não comem carne. Reduzir ou abandonar totalmente o consumo de carne e álcool não é tão difícil. As pessoas realmente cientes da gravidade da situação devem começar a agir imediatamente. Podemos incorporar a prática do ”dia sem carro” (no car day) ou “dia sem motocicleta” uma vez por semana. Podemos dirigir um carro híbrido. Podemos consumir alimentos vegetarianos ou vegan deliciosos! Há muitas coisas que podemos fazer desde já para salvarmos o planeta. Nossa civilização se auto-destruirá se não acordarmos a tempo.


5. Problemas Familiares e a Resposta Budista


O presente mais precioso que os pais podem dar a seus filhos é sua própria felicidade. É fundamental que os pais tenham tempo para cuidar um do outro e de seus filhos, não se deixando levar pelo trabalho e seus projetos. Ter uma vida simples é a resposta, pois nos permite parar de correr atrás da fama, do dinheiro e do sucesso, e investirmos naquilo que é o mais importante: nossa própria paz e felicidade, e a paz e a felicidade de nossas famílias e comunidades. A prática da escuta profunda e da bondade amorosa preserva e recupera a comunicação. As crianças aprendem naturalmente com os pais a amarem e cuidarem de si. Se os pais deixam de fumar e consumir álcool, as crianças farão o mesmo.


Os Cinco Treinamentos da Plena Consciência devem ser o código de ética da vida familiar. Ir ao templo para recitar os Cinco Treinamentos da Plena Consciência a cada duas semanas e praticar o Começar de Novo* continua sendo uma forte tradição em muitos países budistas. A família é o solo a partir do qual a árvore (criança) cresce. Se não praticar o Começar de Novo, regar as boas sementes no outro, a habilidade da escuta profunda e a fala amorosa, um casal não conseguirá nutrir seu amor e manter a comunicação viva. A prática da plena consciência possibilita a transformação e a cura, fazendo com que os pais protejam-se contra o divórcio e o distanciamento de seus filhos.


6. Educação Budista: Continuidade e Progresso


Os Estudos Budistas se tornaram teóricos demais ao longo do tempo. Podemos ser doutores em estudos budistas e não saber como transformar nosso sofrimento e nossas angústias. Não temos a habilidade necessária para formar uma sangha, para ajudar a reconciliar conflitos em nossa família ou comunidade, para praticar os treinamentos da plena consciência, a concentração e o insight. Hoje em dia, nosso conhecimento sobre o Budismo só nos permite escrever livros budistas e ensinar o Budismo nas escolas. Temos que reorganizar nossos estudos budistas e transformar nossas instituições de ensino em centros de prática também.


Alunos e professores devem praticar juntos, e os professores deve conhecer na prática a experiência da transformação e da cura antes que tenham permissão para ensinar. Vamos formar instituições de Budismo Aplicado e oferecer cursos e práticas voltados à transformação e à cura. Nas escolas, nossas crianças precisam ter a chance de aprender a lidar com a raiva e a violência que trazem dentro de si, saber como escutar com compaixão e usar a fala amorosa. A instrução cívica e a ética budista devem ser ensinadas de modo que mesmo as crianças mais jovens possam praticá-las.


7. O Budismo na Era Digital


O Dharma está disponível a muitas pessoas nesta Era Digital. Podemos participar de uma palestra do Dharma ao vivo, de uma discussão do Dharma, ou até mesmo de uma sessão de meditação sentada com um Mestre e uma sangha sem sairmos de nossas próprias casas, a quilômetros de distância do Mestre e da sangha. É possível beneficiar-se da energia da sangha, ainda que distante. Podemos baixar materiais da internet para estudarmos o Dharma. Ainda assim, nada substitui a intimidade entre o mestre e o discípulo, um membro da sangha e a sangha. A prática da formação de uma sangha, cara-a-cara, continua sendo um passo importante. A construção de uma sangha requer escuta profunda, fala amorosa, compreensão, amor e apoio. Uma sangha por correspondência não é suficiente. Uma sangha com uma boa prática sempre carrega consigo o Buda vivo e o Dharma vivo. Assim, aprender meios de construir uma sangha torna-se uma prática essencial. Uma boa sangha pode ser um refúgio para muitas pessoas. Em nossas instituições budistas, a formação de uma sangha é um tema importante de aprendizado e treinamento.


É também muito importante modernizar e atualizar nossas tradições para que permaneçam relevantes às pessoas de nossa era. A internet, como tecnologia moderna, pode ser um instrumento cheio de recursos para transmitir os ensinamentos do Buda e ajudar a aliviar o sofrimento das pessoas. Podemos fazer o download do som do sino e programar nosso computador para que toque a cada meia-hora, ou a cada hora, ajudando-nos a parar, respirar e retornar à plena consciência. A internet permite que um número imenso de pessoas tenham acesso ao Dharma e isso é fundamental, principalmente entre os jovens. Também precisamos aplicar a sabedoria do Budismo para nos protegermos dos perigos da tecnologia. Em nossa versão atualizada do Pratimoksa, os monásticos têm agora preceitos para o uso da internet com outras pessoas, para que não caiam acidentalmente em sites que não sejam íntegros.


O Buda nos ofereceu uma ferramenta diagnóstica muito boa sob a forma das Quatro Nobres Verdades: sofrimento, as raízes do sofrimento, o fim do sofrimento e a prática para cessar o sofrimento. O Budismo deve ser praticado à luz das Quatro Nobres Verdades e a transformação e a cura de que necessitamos deverão acontecer aqui e agora, e não posteriormente, em outro mundo. Sabemos muito bem como apresentar teorias budistas, mas ainda não conseguimos colocar seus lindos ensinamentos em prática no aqui e agora. A prática, principalmente o Dharma vivo, deve ser bela no aqui e no agora. Neste encontro do Vesak, vamos aproveitar esta oportunidade para compartilhar nosso insight e nosso despertar, vamos nos comprometer a viver nossa vida diária à luz deste insight e deste despertar, e apoiar uns aos outros neste caminho de vida. As contribuições do budismo à construção de uma sociedade, justa, democrática e civil devem ser observadas em nossa prática, em nossa vida diária. Através de nossa consciência, nosso despertar, nosso compromisso, podemos ser a própria mudança que queremos ver em nossa sociedade.


Palestra de Dharma proferida no Retiro sobre Budismo Engajado realizado no Vietnã em maio de 2008


Fonte: Sangha Virtual Thich Nhât Hanh Brasil


* Carinhosamente apelidado Thây pelos seus seguidores, Thich Nhât Hanh é monge Zen vietnamita, poeta, militante pacifista e ativista dos direitos humanos. Fundou a Ordem Tiep Hien ou Ordem do Interser, que pratica o Budismo na perspectiva do engajamento social. Sobreviveu a duas guerras e a um exílio de mais de 30 anos. Em 1967 foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por Martin Luther King Jr. Autor de mais de uma centena de livros, mora em Plum Village (ou Village des Pruniers), um centro de meditação no Sul da França e viaja por todo o mundo conduzindo retiros sobre a arte do viver consciente. Para mais informações sobre o mestre Thây e seus ensinamentos, visita os blogs em português: http://interserblog.blogspot.com, http://br.geocities.com/sangavc e http://sangavirtual.blogspot.com.


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