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sábado, 22 de setembro de 2007

TEXTOS CLÁSSICOS DO BUDISMO ENGAJADO

Por Favor, Chama-me Pelos Meus Nomes Verdadeiros*

Por Thich Nhât Hanh**

Tradução de Samuel Weimar Cavalcante

Eu tenho um poema para você. Este poema é sobre três pessoas. A primeira é uma menina de doze anos, uma entre os boat people cruzando o Golfo do Sião. Ela foi estuprada por um pirata e se jogou no mar. A segunda pessoa é o pirata, que nasceu em uma aldeia distante da Tailândia. E a terceira pessoa sou eu. Eu estava muito irritado, mas não pude tomar partido contra o pirata. Se pudesse teria sido mais fácil, mas não pude. Percebi que se eu tivesse nascido nesta aldeia e tivesse vivido uma vida similar – do ponto de vista econômico, educacional, etc. – é quase certo que seria hoje aquele pirata. Portanto, não é fácil tomar partido. A partir do meu sofrimento, escrevi esse poema. É chamado Por Favor, Chama-me Pelos Meus Nomes Verdadeiros, por que eu tenho muitos nomes e quando você me chamar por qualquer um deles, terei que dizer “sim”.

Não diga que partirei amanhã,
pois hoje mesmo estarei chegando.

Olhe profundamente: eu chego em cada segundo
para ser um botão de rosa num galho da primavera,
para ser um passarinho, com as asinhas ainda frágeis,
aprendendo a cantar em meu novo ninho,
para ser uma lagarta no coração da flor,
para ser uma jóia se escondendo em uma pedra.

Estou chegando para poder rir e chorar,
para temer e ter esperança.

O ritmo do meu coração é o nascimento e a
morte de tudo o que é vivo.

Sou a efemérida metamorfoseando-se na superfície do rio,
e sou o pássaro que, quando chega a primavera, vem a tempo
de comer a efemérida.

Sou a rã nadando alegremente no lago límpido,
e também sou a serpente que, aproximando-se em silêncio,
se alimenta da rã.

Eu sou a criança em Uganda, só pele e osso,
com minhas pernas finas como varas de bambu,
e sou o vendedor de armas, vendendo armas letais para Uganda.

Sou a garota de doze anos, refugiada num pequeno barco,
que se joga ao mar depois de ser estuprada por um pirata,
e sou o pirata, com meu coração ainda incapaz de ver e amar.

Sou um membro do Politburo, com enorme poder em minhas mãos,
e sou o homem que tem que pagar sua "dívida de sangue" ao meu povo,
morrendo lentamente em campo de trabalhos forçados.

Minha alegria é como a primavera,
cujo calor faz as flores brotarem
em todos os jardins da vida.
Minha dor é como um rio de lágrimas
que, de tão cheio, enche os quatro oceanos.

Por favor, chama-me pelos meu nomes verdadeiros,
para que eu possa ouvir todo o choro e todo o riso de uma vez,
para que eu possa ver que minha alegria e minha tristeza são uma só.

Por favor, chama-me pelos meus nomes verdadeiros,
para que eu possa despertar
e, assim, deixar a porta do meu coração aberto,
a porta da compaixão.

Ainda tenho o assunto deste poema em minha mente. “Onde está o seu inimigo?”. Pergunto a mim mesmo todo o tempo. Nossa terra, nossa verde e linda terra, está em perigo e todos nós sabemos disso. Não estamos lidando com um pirata, mas lidando com a destruição da terra onde nosso pequeno barco estava. E ela vai se perder se não tivermos cuidado. Nós pensamos que o inimigo é o outro e por isso nunva podemos vê-lo. Todos precisam de um inimigo para sobreviver. A Rússia precisa de um inimigo. Os Estados Unidos precisam de um inimigo. A China precisa de um inimigo. O Vietnã precisa de um inimigo. Todos precisam de um inimigo. Sem um inimigo não podemos sobreviver. Para viver, as pessoas e os governos precisam de inimigos. Eles querem que tenhamos medo, ódio, para podermos cerrarmos fileira atrás deles. E se eles não tiverem um inimigo real, inventam um para nso mobilizar. Hoje em dia, muitas pessoas dos Estados Unidos já foram à Rússia e descobriram que os Russos são boas pessoas e existem cidadãos russos que vieram aos Estados Unidos e, quando retornam, relatam que os americanos são boa gente. Isso, apesar de décadas ambos os lados dizendo o quão maus são as pessoas do outro lado.

Um amigo do movimento pela paz me disse: “Cada vez que vejo o presidente na televisão, eu não suporto; eu tenho que desligar a TV. Senão eu fico pálido”. Ele acredita que a situação do mundo está nas mãos do governo e que só quando o presidente mudar sua política, teremos paz. Eu disse a ele que isso não é inteiramente correto. O “presidente” está em cada um de nós. Nós sempre servimos ao nosso governo. No Budismo falamos de originação interdependente. “Isto é por que aquilo é. Isto não é por que aquilo não é”. Nossa vida cotidiana não tem nada a ver com nosso governo? Por favor medite sobre essa questão. Parecemos acreditar que nossa vida cotidiana não tem nada a ver com situação do mundo. Mas se não não mudarmos nossas vidas, não poderemos mudar o mundo.

No Japão, muito tempo atrás, as pessoas levavam três horas para tomar uma xícara de chá. Você pode pensar que é uma perda de tempo, porque tempo é dinheiro. Mas duas pessoas passando três horas tomando chá juntas, tem muito a ver com a paz. Os dois homens, ou duas mulheres, não falavam muito. Trocavam apenas uma palavra ou outra, mas eles estavam realmente lá, aproveitando o tempo e o chá. Eles estavam realmente conscientes da presença um do outro.

Hoje em dia, permitimo-nos apenas alguns minutos para o chá ou café. Vamos a um bar, pedimos uma xícara de café ou chá, ouvimos música e outros ruídos altos, pensamos sobre os assuntos que iremos resolver depois. Nesta situação, o chá não existe. Somos violentos em relação ao chá. Não o reconhecemos com um a entidade viva – e isto está diretamente relacionado com o porquê de nossa situação estar desse jeito. Quando abrimos o jornal de domingo, devíamos saber que para imprimir aquela edição, que às vezes pesa 10 ou 12 libras, eles tiveram que derrubar uma floresta inteira. Estamos destruindo a terra sem saber.

Beber uma xícara de chá, abrir o jornal, usar o papel higiênico, tudo isso tem a ver com a paz. Não violência pode ser chamada de “plena consciência”. Temos que ser conscientes do que somos, de quem somos e do que estamos fazendo. Quando me tornei noviço em um monastério budista, foi me ensinado a ser plenamente consciente de cada ato durante todo o dia. Desde então, tenho praticado a plena consciência e a concentração. Eu costumava pensar que praticar daquele jeito era importante só para os iniciantes, que os mais avançados faziam outras coisas – mas agora sei que praticar a plena consciência é para todos, incluindo o abade. O objetivo da meditação budista é o olhar para a nossa própria natureza e se tornar um Buda. Isso só poderá ser feito através da plena consciência. Se você não estiver consciente do que está acontecendo em si mesmo e no mundo, como você poderá ver sua própria natureza e se tornar um Buda?

A palavra Buda vem da raiz Buddh, que significa “despertar”. Um Buda é alguém que despertou. Estamos realmente acordados em nossa vida diária? Essa é uma questão à qual convido vocês a pensar. Estamos despertos quando tomamos chá? Estamos acordados quando abrimos o jornal? Estamos despertos quando tomamos sorvete?

A sociedade torna difícil o despertar. Sabemos que 40.000 crianças no Terceiro Mundo morrem todos os dias de fome, mas continuamos a nos esquecer. Este tipo de sociedade no qual vivemos nos faz perder a memória. E, por isso, precisamos de exercícios de plena consciência. Por exemplo, conheço um grupo de budistas que param de comer alguns dias na semana para se lembrar da situação do Terceiro Mundo.

Um dia, eu perguntei a um garoto vietnamita, refugiado, que estava comendo uma tigela de arroz , se as crianças de seu país comiam arroz de tão boa qualidade. Ele disse “Não”, por que ele conhece a situação. Ele experimentou a fome no Vietnã – ele comia apenas batatas secas e dificilmente comia uma tigela de arroz. Na França, ele tem comido arroz há uma ano e, às vezes, começa a esquecer. Mas quando pergunto a ele, ele se lembra. Não posso perguntar o mesmo para uma criança americana ou francesa, por que elas não tiveram esse tipo de experiência. Elas não vão entender. Eu percebo agora como é difícil para as pessoas que vivem no ocidente saber qual a verdadeira situação do Terceiro Mundo. Parece que não tem nada a ver com a situação aqui. Eu disse ao garoto vietnamita que esse arroz vem da Tailândia e que a maioria das crianças tailandesas não tem esse arroz para comer. Eles comem arroz de pior qualidade, por que o melçhor é para exportação. O governo deles precisa de divisas externas e então reservam o melhor arroz para os ocidentais, não para eles mesmos.

No Vietnã temos uma banana deliciosa due duja, mas agora crianças e adultos não têm mais o direito de comê-las, por que é somente para exportação. E o que recebemos em troca? Armas. Alguns de nós praticamos este exercício de plena consciência: adotamos uma criança no Terceiro Mundo para saber notícias através delas, dessa maneira mantemos contato com a realidade externa. Tentamos de várias maneiras nos manter acordados para as coisas, mas a sociedade nos mantém esquecidos. É muito difícil praticar a plena consciência nesta sociedade.

Existem maneiras de nutrirmos a plena consciência, gozarmos do silêncio, apreciar o mundo. Havia uma menino de treze anos da Holanda que veio para o nosso centro e almoçou conosco em silêncio. Foi a primeira vez que ele comeu uma refeição em silêncio e ele estava se sentindo estranho. O silêncio era muito pesado. Depois da refeição perguntei-lhe se ele se sentia mal e ele respondeu “Sim”. Então eu expliquei para ele que a razão pela qual comíamos em silêncio era para apreciarmos a comida e a presença uns dos outros. Se conversarmos demais não conseguiremos apreciar essas coisas. Perguntei-lhe se alguma vez ele já desligou a TV para melhor apreciar a janta ou a conversa com os amigos e ele disse “Sim”. Então o convidei a se juntar a nós em outra refeição e ele comeu junto em silêncio e conseguiu apreciar bastante.

Perdemos o nosso gosto pelo silêncio. Cada vez que temos alguns minutos, pegamos um livro para ler ou telefonamos ou ligamos a TV. Não sabemos como ser nós mesmos sem algo que nos acompanhe. Perdemos nosso gosto em estarmos sozinhos. A sociedade retira de nós muitas coisas e nos destrói com barulhos, aromas e tantas distrações. A primeira coisa a fazer é retornar-mos a nós mesmos, para nos redescobrirmos e sermos melhores. Isto é muito importante. Precisamos organizar nossa vida cotidiana de maneira a não permitir que a sociedade nos colonize. Temos que ser independentes. Temos que ser pessoas reais e não apenas vítimas da sociedade ou dos outros.

Os boat people diziam que toda a vez que o pequeno barco deles era apanhado por uma tempestade eles sabiam que suas vidas estavam em perigo. Mas se uma pessoa no barco mantivesse a calma e não entrasse em pânico, isso era de grande ajuda para todos. As pessoas a ouviam e se mantinham serenas e havia mais chance de sobreviver ao perigo. Nosso planeta Terra é como um pequeno barco. Comparado com o resto do cosmo é apenas um pequeno barco e está em risco de naufragar. Precisamos de alguém para nos inspirar calma e confiança, para nos dizer o que fazer. Quem é esta pessoa? Os sutras budistas mahayana nos dizem que essa pessoa é você. Somente com alguém assim – calmo, lúcido, desperto – nossa situação poderá melhorar. Desejo a você boa sorte. Por favor, seja você mesmo, por favor, seja essa pessoa.


* Texto publicado em Fred Eppsteiner (Org.),
The Path of Compassion. Writings on Socially Engaged Buddhism, Parallax Press, 1988. Título original em inglês: Please Call Me By My True Names.

** Carinhosamente apelidado Thây pelos seus seguidores, Thich Nhât Hanh é monge Zen vietnamita, poeta, militante pacifista e ativista dos direitos humanos. Fundou a Ordem Tiep Hien ou Ordem do Interser, que pratica o Budismo na perspectiva do engajamento social. Sobreviveu a duas guerras e a um exílio de mais de 30 anos. Em 1967 foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por Martin Luther King Jr. Autor de mais de uma centena de livros, mora no Village des Pruniers (Plum Village), um centro de meditação no Sul da França e viaja por todo o mundo conduzindo retiros sobre a arte do viver consciente. Para mais informações sobre o mestre Thây e seus ensinamentos, visita os blogs em português: http://interserblog.blogspot.com, http://br.geocities.com/sangavc e http://sangavirtual.blogspot.com.


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