Compreensão e compaixão são o caminho: religando as tradições espirituais à sua essência
Discurso de Antonino Condorelli, idealizador da Rede Brasileira de Budistas Engajados e membro da Sangha de Natal/RN informalmente ligada à Ordem do Interser do mestre Thich Nhât Hanh, no evento de lançamento do Fórum Potiguar de Diálogo Inter-Religioso, qu aconteceu em 14/05/2009 no Plenarinho da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte.
Religião vem de religar, reconectar. Reconectar ao quê? À nossa natureza mais profunda, à nossa essência. Religar o nosso corpo, a nossa mente e as nossas emoções; nos religar ao outro, à espécie humana; nos religar à natureza, a todas as espécies vivas e inanimadas, aos animais, os vegetais e os minerais.
Se olharmos cuidadosamente para nós mesmos, perceberemos que não estamos sós: se soubermos tocar profundamente o nosso corpo, com atenção plena, veremos que todas as gerações passadas de nosso ancestrais, todas as gerações futuras que surgirão a partir de nós estão presentes em cada uma de nossas células; veremos que ele contém a nossa mente, porque tudo o que pensamos, sentimos, falamos e fazemos manifesta-se em nossa carne, traduz-se em sensações, em saúde ou doença; veremos que contém todas as pessoas, assim como a água da chuva, o solo, os minerais, tudo o que fez com que os alimentos que ingerimos ao longo da nossa vida chegassem até nós, incluindo o trabalho de quem os produziu e trouxe à nossa mesa, os alimentos que nutriram estas pessoas, as gerações passadas que possibilitaram a existência delas; veremos que contém o sol, que sustenta e torna possível a nossa vida; veremos que contém a história do universo, desde o big bang, porque absolutamente tudo o que aconteceu até hoje fez com que estejamos onde nos encontramos neste exato momento. Nós não existimos por nós mesmos: nós “interexistimos” com tudo o mais, intersomos.
Este lindo verbo – interser - foi forjado pelo mestre Zen vietnamita Thich Nhât Hanh para traduzir a percepção de que somos uma peça da infinita dança cósmica onde tudo se compenetra, se entrelaça e se transforma mutuamente; somos parte da “teia da vida”. Como nos mostram a teoria da relatividade e diversas visões científicas contemporâneas como a física quântica, o pensamento sistêmico, a ciência ecológica, o pensamento complexo, a teoria das redes autopoiéticas etc., nesta teia não há entidades estanques, separadas e independentes, mas manifestações interdependentes da mesma realidade. Então, o outro não está separado de mim e a minha felicidade e plena realização não são possíveis sem a felicidade e a plena realização do outro. A natureza não é um recipiente externo, mas o meu corpo maior e minha saúde e equilíbrio não são possíveis sem a saúde e o equilíbrio de todos os seres. Sendo assim, não existe um caminho, mas infinitos caminhos... Aliás, para ser mais exatos não há caminho: o caminho se faz ao andar. Os grandes mestres da humanidade passados e presentes perceberam esta realidade e a viveram na pele, a encarnaram no seu dia a dia, a materializaram com a própria vida.
Porém, a atividade compulsiva da mente humana, do nosso ego constantemente empenhado em construir idéias, conceitos e noções sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o mundo, em separar o “eu” do “outro” atribuindo a cada um características inerentes, em cristalizar estas percepções transformando-as em doutrinas, filosofias, rituais, paradigmas e em cima deles edificar identidades, sociedades e culturas fez com que ao longo de séculos e séculos de história humana as diferenças entre as diversas tradições espirituais que enriquecem a humanidade fosse motivo de divisão, inimizade, incompreensão, discriminação e até mesmo de guerra, perseguição, destruição, genocídio.
A essência das tradições espirituais, porém, nos mostra que outro caminho é possível. Nos mostra que não estamos separados e que podemos amar ao nosso próximo como a nós mesmos, como disse e fez Jesus de Nazaré, e que o ódio jamais se vence pelo ódio, o ódio só se vence pelo amor, como disse e fez Siddharta Gautama, o Buda. Nos mostram que é possível transformar as nossas emoções destrutivas em compreensão e compaixão, como fazemos nós praticantes do Dharma através da arte de viver em plena consciência, como fazem os irmãos e irmãs de todas as tradições praticando e encarnando os ensinamentos dos seus mestres. Nos mostram que é possível amar quem nos odeia, que é possível não pregar a paz, o amor e a compaixão, mas ser paz, amor e compaixão, tornar estas últimas estados cotidianos da nossa mente, encarná-las e vivê-las em cada pensamento, palavra e ato.
É isso que fizeram os praticantes da Escola da Juventude pelo Serviço Social e a Ordem do Interser fundada pelo meu mestre Thich Nhât Hanh, criador da expressão Budismo Engajado, durante a guerra do Vietnã, no coração do ódio, a morte, a destruição e o horror, perseguidos e massacrados pelos norte-americanos de um lado e pelos comunistas do outro e amando da mesma maneira a uns e outros. É isso que fazem os irmãos e irmãs tibetanos, é isso que fizeram São Francisco de Assis, o Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Desmond Tutu, Dom Helder Câmara, só para citar alguns nomes. É isso que fazem, todo dia milhares de praticantes de todas as tradições espirituais em todos os rincões do planeta, contribuindo silenciosamente, sem alarde, a criar uma sociedade mais fraterna e mais sustentável.
São estas as sementes que o nosso Fórum pretende implantar aqui no Rio Grande do Norte através do diálogo com o poder público e com a sociedade civil, agindo na educação, na cultura, nos espaços de discussão das políticas públicas e em todas as esferas que possibilitem a disseminação na sociedade das sementes de paz, transformação e amor que todas as tradições que participam do Fórum carregam.
Que todos os seres humanos, animais, vegetais e minerais do Rio Grande do Norte possam se beneficiar da existência e das ações do Fórum Potiguar de Diálogo Inter-Religioso, ficarem livre do sofrimento e das suas causas e cultivarem compreensão, compaixão e amor.
Concluo recitando o segundo dos Quatorze Treinamentos do Budismo Engajado formulados por Thich Nhât Hanh, que a meu ver sintetiza a essência do diálogo inter-religioso:
Consciente do sofrimento causado pelo apego a conceitos e a percepções errôneas, estou determinado a não possuir uma mente limitada e amarrada às idéias atuais. Aprenderei e praticarei o desapego a pontos de vista a fim de estar aberto a outras compreensões e experiências. Estou consciente de que o conhecimento que possuo não é imutável e não constitui verdade absoluta. A verdade é encontrada na vida e a observarei tanto no meu interior como ao redor de mim, em cada momento, pronto a aprender através de toda a minha vida.
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