Cuidando de Si, Cuidando do Mundo
Budismo Prático para a Transformação da Sociedade
Por Samuel Cavalcante
Para Onde Vamos?
1. As mudanças climáticas, e o conseqüente aumento dos desastres naturais, trouxeram ao nosso convívio familiar um assunto outrora restrito aos debates intelectuais. Se antes o debate era feito em termos de “socialismo ou barbárie”, o capitalismo agora se defronta à sua própria sobrevivência e busca encontrar uma saída para a sua civilização. A palavra “socialismo” se esvaziou do seu conteúdo original e, depois do fracasso das experiências européias e asiáticas, tornou-se mais a expressão de um sentimento difuso de alguns intelectuais e de setores mais pobres e marginalizados que um projeto civilizatório alternativo. Com esse alarme, as pessoas começam a perceber que o seu modo de vida tem um impacto no planeta em que vivem.
2. Acostumamo-nos a viver em função do aumento ilimitado de conforto e bens materiais. Para alcançar esse objetivo, os seres humanos ocuparam a Terra como uma máquina de guerra. Destruímos ecossistemas inteiros e ameaçamos destruir todos os outros. Extinguimos mais espécies vivas que todas as catástrofes naturais juntas. Acostumamo-nos a extrair os recursos da natureza como se eles fossem inexauríveis. Avançamos sobre as florestas transformando-as em pastagens e plantações de grãos como se isso fosse indiferente. Consumimos água como se ela fosse abundante, como se as fontes jamais secassem. Produzimos e consumimos plásticos e sintéticos sem nos darmos conta de que, em breve, não teremos lugar para jogar tanto lixo - sem percebermos que tanto a capacidade da sociedade como a da natureza em reciclar todo esse lixo é limitada.
3. Exploramos as energias do trabalho humano até o limite. Tentamos transformar cada minuto da vida em uma chance de aumentar a produtividade - estamos fazendo sempre, e cada vez mais, uma grande quantidade de coisas ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando trocar o pneu com o carro andando, não queremos perder tempo. A tecnologia nos permite cumprir um sem número de tarefas e nos promete, com isso, mais tempo livre. Mas se pararmos para observar, essa mesma tecnologia não dissemina apenas mp3 e televisões por todo o canto. Ela sugere também a possibilidade levarmos mais trabalho para a cama, para o banheiro, para o restaurante, para a escola, para o carro, para as férias na praia.
4. O mp3 e a televisão são apenas acompanhamento para o trabalho extra com gosto de tempo livre. Na realidade o tempo livre é cada vez menor – menos tempo livre para ficarmos sozinhos, para usufruirmos a companhia de quem amamos, amigos e companheiros, para termos contato com a natureza, para usufruirmos de um pouco de paz e silêncio..
5. Estamos nos tornando incapazes de perceber diretamente as belezas da vida ao nosso redor, o verde, as árvores, os passarinhos, o olhar das pessoas, sejam elas crianças ou adultos. Esquecemo-nos de ver o céu azul e observar a curiosa forma das nuvens, esquecemo-nos de ver uma nuvem de chuva que se forma no horizonte e contemplar quando o tempo fica bonito pra chover e quando podemos até sentir o cheiro da chuva que vem de longe carregado pelo vento. Andamos apressados e ansiosos para perdermos caloria e não nos damos conta do vai-e-vem das ondas na praia ou os passarinhos nos fios dos postes ou até da beleza de detalhes arquitetônicos ou da vida comum dos bairros.
6. Estamos nos tornando incapazes de nos relacionar com o mundo sem mídia, sem meio, sem intermediações tecnológicas e, finalmente, tendo menos tempo livre para pararmos e nos darmos conta: para onde estamos indo?
7. A nossa sociedade é baseada na produção generalizada de mercadorias e na transformação generalizada dos elementos da realidade em mercadoria. Mas não é só isso. Tem mais um detalhe. Para que os criadores e vendedores de mercadorias tenham mais lucro é necessário que a forma por excelência do consumo seja individual. A produção não é para ser consumida coletivamente, é para servir aos desejos estimulados (e descontrolados) por bens e serviços de cada indivíduo. Como o objetivo é comprar prazer e satisfação, é necessário que o consumo se dê na esfera puramente privada, individual, solitária, pessoal. Não apenas a comida, móveis, bicicletas, bolsas, relógios, calças, cigarros são mercadorias. Qualquer coisa pode ser uma mercadoria e ser tratada como tal. As árvores, as flores, o ar puro, o amor, o sexo, o prazer, as notícias, as descobertas científicas, as filosofias, as armas, os governos, os partidos políticos, o corpo humano, os órgãos do corpo humano, tudo se transforma em mercadoria. Tem preço, custo, vida útil e sofre as oscilações do mercado, da inflação e da taxa de juros. E também, por que não, podem ser motivo de uso da violência para sua apropriação.
8. O "mercado", este fenômeno social que é quase uma pessoa, "descobriu" que a busca da felicidade pode ser facilmente substituída pela busca da satisfação dos desejos, especialmente a busca do prazer. Descobriu também que os desejos humanos são extremamente elásticos e, estes sim, muito provavelmente são inesgotáveis. Descobriu, por fim, que a busca do prazer é, por extensão, a busca por se cercar de coisas e que o prazer advindo dessas coisas é muito provisório e precário, ou seja, facilmente as novidades se tornam enfadonhas.
9. Essa é base sobre o qual construímos uma capacidade tecnológica enorme de criar mercadorias diferentes e transformar tudo o que nos cerca em novas mercadorias, as quais também envelhecem rapidamente e se transformam em um amontoado de mais do mesmo.
10. O tempo livre foi colonizado e com ele o reinado do mercado avança sobre a intimidade dos indivíduos e nas reentrâncias da vida privada e comunitária. A solidez e estabilidade da vida individual e comunitária são despedaçadas não em nome de uma percepção holística e sem ego do universo, mas como fruto da luta entre egos exacerbados pelo consumo e pela competição.
11. O fluxo da vida se torna um ciclo de trabalho, frustração, esperanças míopes, alegrias pontuais,economia de tempo e superestimulação dos sentidos. Não é à toa que vemos tocadores de mp3 e mp4 por todos os lados. A onipresença da música e da imagem serve justamente como pitada de tempero para disfarçar o prolongamento do tempo de trabalho, de produção e consumo de mercadorias, para as mais recônditas esferas da vida humana – as quais, até pouco tempo, tinham se mantido um pouco a um salvo da universalização do mercado e da circulação monetária. Tempo livre se tornou sinônimo de diversão e diversão, sinônimo de consumo - o corpo não pode parar, a mente não pode parar. Silêncio se tornou sinônimo de tédio, e paz, sinônimo de loucura.
12. Mas os alertas se multiplicam. Lentamente, estamos aprendendo que não pode mais ser assim. Tanto a idéia de que podemos produzir mercadorias ilimitadamente quanto a de que podemos consumir mercadorias ilimitadamente, são idéias extremamente perigosas - para nós e para nosso planeta. A satisfação é um estado volátil. Quando nos damos conta, não estamos mais satisfeitos. No budismo, costumamos chamar esse ciclo de satisfação e insatisfação no qual nos enredamos, de Samsara.
13. É necessário parar. Olhar em volta. Olhar para dentro. Para onde vamos?
Cinco Práticas Para Que o Futuro Seja Possível
14. “Para Que o Futuro Seja Possível” é uma maneira de traduzir o livro organizado pelo ven. Thich Nhat Hanh intitulado “For A Future To Be Possible”. Neste livro ele sugere aos indivíduos e grupos um conjunto de cinco práticas para, como o próprio título diz, garantir que o futuro seja possível.
15. Essas práticas são baseadas nos ensinamentos tradicionais do budismo, atualizados por ele e sua comunidade para dar conta das especificidades do mundo moderno.
16. Tradicionalmente, ao se tornar o budista o praticante toma para si o compromisso de praticar os chamados 5 preceitos (em sânscrito, Pancasila), que são: não tomar bebidas embriagantes, não matar, não roubar, proteger a energia sexual e praticar a fala correta. Thay observou que no Ocidente a palavra “preceito” é muito marcada pela tradição cristã dos mandamentos e pela noção de pecado. Refletindo em conjunto com a sua comunidade, ele então recuperou um outro sentido desses ensinamentos, também presente nos textos tradicionais: o de Shiksha, (treinamento em sânscrito). Chamou então a essas práticas de Os Cinco Treinamentos da Plena Consciência.
17. Thây e sua comunidade observaram que o modo de exposição, próprio ao costume de transmissão oral, já não era mais adequado aos tempos modernos e precisava ser atualizado. Os ensinamentos budistas, para serem práticos e eficazes, ou seja, serem úteis no processo de libertação e de transformação do sofrimento, precisam se aproximar da linguagem e da vida das pessoas, senão correm o risco de se transformar em mero objeto de devoção.
18. Não são mandamentos. E nem têm como pano de fundo uma noção dualista de bem e mal e de pecado. São práticas que tem como base a possibilidade de cada um contribuir à sua maneira para a transformação de si mesmos e da sociedade. Os praticantes não são convidados a repetir idéias ou a ser parte de uma redes de transmissão de noções políticas abstratas. Nem tampouco se apartam da sociedade para se purificar e encontrar, cada um, seu próprio caminho individual de libertação e felicidade e nem constróem barreiras sectárias entre si e as demais pessoas.
19. A noção de treinamento (shiksha), por outro lado, reforça a perspectiva de superação do dualismo do mandamento. O mandamento, é para ser cumprido e estabelece o limite do bem e do pecado. O treinamento reconhece a precariedade da nossa situação existencial. Reconhece o fato de que não nascemos como uma tábula rasa, pronta a ser preenchida por uma educação que tenta inculcar conceitos e mudar nossas práticas através da linguagem.
20. Ao propôr a figura do treinamento, Thay e sua comunidade, baseando-se nos ensinamentos originais de Buda, observaram que o que somos é fruto de todas as nossas conexões pessoais e físicas constituída no passado, no presente e no futuro. Conexões com nossos antepassados de sangue, e os antepassados dos outros, as grandes figuras, os grandes líderes políticos e espirituais que ajudaram a construir a nossa identidade pessoal e a identidade da nossa sociedade, o nosso meio-ambiente, nossos amigos, família etc. “Não somos criações, somos manifestações”, diz Thây.
21. O treinamento é um elo necessário entre a finalidade do fim do sofrimento, da utopia, da liberdade, e o caminho que conduz a ela. A possibilidade da liberdade já está aqui, não está em outro lugar e nem está no futuro. A efetivação da liberdade é uma revolução existencial, que começa e se completa aqui e agora, não há outro momento onde isso possa ser feito, o passado já foi e o futuro não está tampouco disponível. Só temos o agora disponível para ser transformado e só mediante um mergulho no agora é podemos transformar o passado e o futuro.
22. Aquilo que chamamos de “eu” é algo muito problemático. Ao observarmos profundamente o nosso eu vemos que a cada vez que tentamos encontrar algo que seja a base de uma identidade intrínseca, nós o perdemos logo em seguida. Somos feitos de elementos que, separados, desfazem a ilusão da solidez desse “eu”. Somos, ao mesmo tempo, a água, os sais minerais, os elementos químicos do mundo orgânico e inorgânico, o sol e tudo o que sustenta nossa sobrevivência. Carregamos, além disso, as gerações passadas no nosso corpo e na nossa mente. Nossa existência não pode ser separada da existência do outro, do ambiente, do universo. No budismo chamamos a isso de ensinamento do “não-eu” e é um dos pilares da prática.
23. Thay também criou uma palavra nova para designar a existência nesses termos. Para além das especulações metafísicas acerca do Ser e do Não-Ser, Thay nos convida a pensar multidimensionalmente, envolvendo ao mesmo tempo processo e interdependência. Então ele chama isso de Interser. É um verbo também, não é apenas um substantivo. Ao existirmos, intersomos. Nós e o sol intersomos, você e eu intersomos. Nos e a sociedade intersomos. O sol e a lua intersão. As florestas e o nosso prato de comida intersão, assim como a sociedade e a natureza...E assim por diante. É uma maneira de adaptarmos a nossa linguagem aos ensinamentos, um modo de transformar uma noção de interdepedência, que poderia ser interpretada de maneira demasiado estática, em um verbo que transmite a mesma noção só que agora carregada de movimento, processo, possibilidade.
As cinco práticas, ou treinamentos da plena consciência são os seguintes:
Primeiro Treinamento
Consciente do sofrimento causado pela destruição da vida, eu me comprometo a cultivar a solidariedade* e a aprender maneiras de proteger a vida das pessoas, animais , plantas e minerais. Estou determinado a não matar, a não deixar que outros matem e a não tolerar qualquer ato de matança no mundo, no meu pensamento e no meio modo de vida.
Segundo Treinamento
Consciente do sofrimento causado pela exploração, pela injustiça social, pelo roubo e pela opressão, eu me comprometo a cultivar a gentileza amorosa e a aprender maneiras de trabalhar pelo bem estar das pessoas, animais plantas e minerais. Praticarei a generosidade, compartilhando meu tempo, minha energia e meus recursos materiais com aqueles que realmente precisam. Estou determinado a não roubar e a não me apossar de nada que pertença, porventura, a outros. Respeitarei a propriedade alheia, mas impedirei que outros lucrem com o sofrimento humano ou com o sofrimento de outras espécies sobre a terra.
Terceiro Treinamento
Consciente do sofrimento causado pela má conduta sexual, eu me comprometo a cultivar a responsabilidade e a aprender maneiras de proteger a integridade dos indivíduos, dos casais, das famílias e da sociedade. Estou determinado a não me engajar em relações sexuais sem amor e sem compromisso duradouro. Para preservar a minha felicidade e a dos outros, estou determinado a respeitar os meus compromissos e os compromissos dos outros. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para proteger as crianças do abuso sexual e para impedir que casais e famílias sejam desfeitos pela má conduta sexual.
Quarto Treinamento
Consciente do sofrimento causado pelas palavras descuidadas e pela incapacidade de ouvir os outros, eu me comprometo a cultivar a fala amável e a escuta profunda para levar alegria e felicidade aos outros e aliviá-los em seu sofrimento. Estou determinado a falar a verdade, com palavras que inspirem autoconfiança, alegria e esperança. Não divulgarei notícias que não tenham fundamento seguro e nem criticarei ou condenarei aquilo de que não tenha certeza. Evitarei pronunciar palavras que possam causar divisão ou discórdia, que possam desagregar a família ou a comunidade. Estou determinado a fazer todos os esforços possíveis para reconciliar e resolver todos os conflitos, por menores que sejam.
Quinto Treinamento
Consciente do sofrimento causado pelo consumo irresponsável, eu me comprometo a cultivar a boa saúde, tanto física quanto mental, para mim, minha família e minha sociedade, praticando a alimentação, a ingestão de líquidos e o consumo com plena consciência. Somente ingerirei ítens que preservem a paz, o bem estar e a alegria no meu corppo, na minha consciência e no corpo coletivo e na consciência da minha família e da minha sociedade. Estou determinado a não usar álcool, ou qualquer tóxico ou consumir alimentos ou outros ítens que contenham toxinas, como certos programas de TV, revistas, livros, filmes e conversas. Estou consciente de que prejudicar o meu corpo ou minha consciência com esses venenos é trair meus ancestrais, meus pais, minha sociedade e as gerações futuras. Trabalharei para transformar a violência, o medo, a ira e a confusão que existem dentro de mim e na sociedade, mediante uma dieta para mim mesmo e para a sociedade. Entendo que uma dieta apropriada seja crucial para auto-transformação e para a transformação da sociedade.
Quem é Thich Nhat Hanh?
24. Thây, como é chamado pelos seus estudantes e seguidores, é um Mestre Zen nascido no Vietnã. No final dos anos 60, com a proibição de retornar ao seu país, Thay se estabeleceu no sudoeste da França, onde construiu uma comunidade de leigos e monásticos que é, hoje, internacionalmente conhecida como Plum Village. Tornou-se famoso por ter cunhado a expressão “budismo engajado” nas suas atividades sociais no Vietnã em meio às guerras de libertação nacional nos anos 60 – primeiro contra os franceses e, posteriormente, contra os norte-americanos. Nunca tomou partido nesse conflito, a não ser ficar ao lado dos camponeses pobres e ser contra a guerra, sendo por isso perseguido por ambas as partes em luta. Por causa desse engajamento, foi proibido primeiro pelo governo pró-americano e depois pelo governo comunista do Vietnã de retornar ao país. Somente em 2005 é que, depois de dez anos de negociações, ele pôde retornar e publicar livros, inclusive obtendo espaço para dar palestras para os altos escalões do partido.
25. Sua comunidade possui monastérios e centros leigos de práticas espalhados pelo mundo, especialmente Alemanha, Inglaterra, Holanda, Itália, França, Estados Unidos, Canadá, países escandinavos, Vietnã, Tailândia e Hong Kong. Nestes locais são organizados períodos de práticas coletivas de meditação, partilha de experiências, reconexão, exercícios físicos e artísticos, reflexão sobre o mundo moderno e encontros interreligiosos formais e informais. Os participante são convidados a refletir sobre si mesmos e sobre seus vínculos com os ancestrais, com a natureza como modo a transformar esta experiência em uma base concreta para um engajamento social sólido.
26. Diferentemente das escolas budistas tradicionais, mas sm excluí-las, os grupos de prática não se caracterizam pela ênfase na construção de templos e performance ritual. A base de sua rede de praticantes são pequenos grupos que se reúnem semanalmente para relembrar os treinamentos e descobrir os melhores meios de atingir a libertação do sofrimento, entendido em sua dimensão coletiva, social e ambiental.
*Proponho aqui a tradução de Karuna (que em inglês é traduzido comumente por compassion) por Solidariedade (ao invés de compaixão, como acontece tradicionalmente). Ver Nota de Tradução da minha autoria.
Budismo Prático para a Transformação da Sociedade
Por Samuel Cavalcante
Para Onde Vamos?
1. As mudanças climáticas, e o conseqüente aumento dos desastres naturais, trouxeram ao nosso convívio familiar um assunto outrora restrito aos debates intelectuais. Se antes o debate era feito em termos de “socialismo ou barbárie”, o capitalismo agora se defronta à sua própria sobrevivência e busca encontrar uma saída para a sua civilização. A palavra “socialismo” se esvaziou do seu conteúdo original e, depois do fracasso das experiências européias e asiáticas, tornou-se mais a expressão de um sentimento difuso de alguns intelectuais e de setores mais pobres e marginalizados que um projeto civilizatório alternativo. Com esse alarme, as pessoas começam a perceber que o seu modo de vida tem um impacto no planeta em que vivem.
2. Acostumamo-nos a viver em função do aumento ilimitado de conforto e bens materiais. Para alcançar esse objetivo, os seres humanos ocuparam a Terra como uma máquina de guerra. Destruímos ecossistemas inteiros e ameaçamos destruir todos os outros. Extinguimos mais espécies vivas que todas as catástrofes naturais juntas. Acostumamo-nos a extrair os recursos da natureza como se eles fossem inexauríveis. Avançamos sobre as florestas transformando-as em pastagens e plantações de grãos como se isso fosse indiferente. Consumimos água como se ela fosse abundante, como se as fontes jamais secassem. Produzimos e consumimos plásticos e sintéticos sem nos darmos conta de que, em breve, não teremos lugar para jogar tanto lixo - sem percebermos que tanto a capacidade da sociedade como a da natureza em reciclar todo esse lixo é limitada.
3. Exploramos as energias do trabalho humano até o limite. Tentamos transformar cada minuto da vida em uma chance de aumentar a produtividade - estamos fazendo sempre, e cada vez mais, uma grande quantidade de coisas ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando trocar o pneu com o carro andando, não queremos perder tempo. A tecnologia nos permite cumprir um sem número de tarefas e nos promete, com isso, mais tempo livre. Mas se pararmos para observar, essa mesma tecnologia não dissemina apenas mp3 e televisões por todo o canto. Ela sugere também a possibilidade levarmos mais trabalho para a cama, para o banheiro, para o restaurante, para a escola, para o carro, para as férias na praia.
4. O mp3 e a televisão são apenas acompanhamento para o trabalho extra com gosto de tempo livre. Na realidade o tempo livre é cada vez menor – menos tempo livre para ficarmos sozinhos, para usufruirmos a companhia de quem amamos, amigos e companheiros, para termos contato com a natureza, para usufruirmos de um pouco de paz e silêncio..
5. Estamos nos tornando incapazes de perceber diretamente as belezas da vida ao nosso redor, o verde, as árvores, os passarinhos, o olhar das pessoas, sejam elas crianças ou adultos. Esquecemo-nos de ver o céu azul e observar a curiosa forma das nuvens, esquecemo-nos de ver uma nuvem de chuva que se forma no horizonte e contemplar quando o tempo fica bonito pra chover e quando podemos até sentir o cheiro da chuva que vem de longe carregado pelo vento. Andamos apressados e ansiosos para perdermos caloria e não nos damos conta do vai-e-vem das ondas na praia ou os passarinhos nos fios dos postes ou até da beleza de detalhes arquitetônicos ou da vida comum dos bairros.
6. Estamos nos tornando incapazes de nos relacionar com o mundo sem mídia, sem meio, sem intermediações tecnológicas e, finalmente, tendo menos tempo livre para pararmos e nos darmos conta: para onde estamos indo?
7. A nossa sociedade é baseada na produção generalizada de mercadorias e na transformação generalizada dos elementos da realidade em mercadoria. Mas não é só isso. Tem mais um detalhe. Para que os criadores e vendedores de mercadorias tenham mais lucro é necessário que a forma por excelência do consumo seja individual. A produção não é para ser consumida coletivamente, é para servir aos desejos estimulados (e descontrolados) por bens e serviços de cada indivíduo. Como o objetivo é comprar prazer e satisfação, é necessário que o consumo se dê na esfera puramente privada, individual, solitária, pessoal. Não apenas a comida, móveis, bicicletas, bolsas, relógios, calças, cigarros são mercadorias. Qualquer coisa pode ser uma mercadoria e ser tratada como tal. As árvores, as flores, o ar puro, o amor, o sexo, o prazer, as notícias, as descobertas científicas, as filosofias, as armas, os governos, os partidos políticos, o corpo humano, os órgãos do corpo humano, tudo se transforma em mercadoria. Tem preço, custo, vida útil e sofre as oscilações do mercado, da inflação e da taxa de juros. E também, por que não, podem ser motivo de uso da violência para sua apropriação.
8. O "mercado", este fenômeno social que é quase uma pessoa, "descobriu" que a busca da felicidade pode ser facilmente substituída pela busca da satisfação dos desejos, especialmente a busca do prazer. Descobriu também que os desejos humanos são extremamente elásticos e, estes sim, muito provavelmente são inesgotáveis. Descobriu, por fim, que a busca do prazer é, por extensão, a busca por se cercar de coisas e que o prazer advindo dessas coisas é muito provisório e precário, ou seja, facilmente as novidades se tornam enfadonhas.
9. Essa é base sobre o qual construímos uma capacidade tecnológica enorme de criar mercadorias diferentes e transformar tudo o que nos cerca em novas mercadorias, as quais também envelhecem rapidamente e se transformam em um amontoado de mais do mesmo.
10. O tempo livre foi colonizado e com ele o reinado do mercado avança sobre a intimidade dos indivíduos e nas reentrâncias da vida privada e comunitária. A solidez e estabilidade da vida individual e comunitária são despedaçadas não em nome de uma percepção holística e sem ego do universo, mas como fruto da luta entre egos exacerbados pelo consumo e pela competição.
11. O fluxo da vida se torna um ciclo de trabalho, frustração, esperanças míopes, alegrias pontuais,economia de tempo e superestimulação dos sentidos. Não é à toa que vemos tocadores de mp3 e mp4 por todos os lados. A onipresença da música e da imagem serve justamente como pitada de tempero para disfarçar o prolongamento do tempo de trabalho, de produção e consumo de mercadorias, para as mais recônditas esferas da vida humana – as quais, até pouco tempo, tinham se mantido um pouco a um salvo da universalização do mercado e da circulação monetária. Tempo livre se tornou sinônimo de diversão e diversão, sinônimo de consumo - o corpo não pode parar, a mente não pode parar. Silêncio se tornou sinônimo de tédio, e paz, sinônimo de loucura.
12. Mas os alertas se multiplicam. Lentamente, estamos aprendendo que não pode mais ser assim. Tanto a idéia de que podemos produzir mercadorias ilimitadamente quanto a de que podemos consumir mercadorias ilimitadamente, são idéias extremamente perigosas - para nós e para nosso planeta. A satisfação é um estado volátil. Quando nos damos conta, não estamos mais satisfeitos. No budismo, costumamos chamar esse ciclo de satisfação e insatisfação no qual nos enredamos, de Samsara.
13. É necessário parar. Olhar em volta. Olhar para dentro. Para onde vamos?
Cinco Práticas Para Que o Futuro Seja Possível
14. “Para Que o Futuro Seja Possível” é uma maneira de traduzir o livro organizado pelo ven. Thich Nhat Hanh intitulado “For A Future To Be Possible”. Neste livro ele sugere aos indivíduos e grupos um conjunto de cinco práticas para, como o próprio título diz, garantir que o futuro seja possível.
15. Essas práticas são baseadas nos ensinamentos tradicionais do budismo, atualizados por ele e sua comunidade para dar conta das especificidades do mundo moderno.
16. Tradicionalmente, ao se tornar o budista o praticante toma para si o compromisso de praticar os chamados 5 preceitos (em sânscrito, Pancasila), que são: não tomar bebidas embriagantes, não matar, não roubar, proteger a energia sexual e praticar a fala correta. Thay observou que no Ocidente a palavra “preceito” é muito marcada pela tradição cristã dos mandamentos e pela noção de pecado. Refletindo em conjunto com a sua comunidade, ele então recuperou um outro sentido desses ensinamentos, também presente nos textos tradicionais: o de Shiksha, (treinamento em sânscrito). Chamou então a essas práticas de Os Cinco Treinamentos da Plena Consciência.
17. Thây e sua comunidade observaram que o modo de exposição, próprio ao costume de transmissão oral, já não era mais adequado aos tempos modernos e precisava ser atualizado. Os ensinamentos budistas, para serem práticos e eficazes, ou seja, serem úteis no processo de libertação e de transformação do sofrimento, precisam se aproximar da linguagem e da vida das pessoas, senão correm o risco de se transformar em mero objeto de devoção.
18. Não são mandamentos. E nem têm como pano de fundo uma noção dualista de bem e mal e de pecado. São práticas que tem como base a possibilidade de cada um contribuir à sua maneira para a transformação de si mesmos e da sociedade. Os praticantes não são convidados a repetir idéias ou a ser parte de uma redes de transmissão de noções políticas abstratas. Nem tampouco se apartam da sociedade para se purificar e encontrar, cada um, seu próprio caminho individual de libertação e felicidade e nem constróem barreiras sectárias entre si e as demais pessoas.
19. A noção de treinamento (shiksha), por outro lado, reforça a perspectiva de superação do dualismo do mandamento. O mandamento, é para ser cumprido e estabelece o limite do bem e do pecado. O treinamento reconhece a precariedade da nossa situação existencial. Reconhece o fato de que não nascemos como uma tábula rasa, pronta a ser preenchida por uma educação que tenta inculcar conceitos e mudar nossas práticas através da linguagem.
20. Ao propôr a figura do treinamento, Thay e sua comunidade, baseando-se nos ensinamentos originais de Buda, observaram que o que somos é fruto de todas as nossas conexões pessoais e físicas constituída no passado, no presente e no futuro. Conexões com nossos antepassados de sangue, e os antepassados dos outros, as grandes figuras, os grandes líderes políticos e espirituais que ajudaram a construir a nossa identidade pessoal e a identidade da nossa sociedade, o nosso meio-ambiente, nossos amigos, família etc. “Não somos criações, somos manifestações”, diz Thây.
21. O treinamento é um elo necessário entre a finalidade do fim do sofrimento, da utopia, da liberdade, e o caminho que conduz a ela. A possibilidade da liberdade já está aqui, não está em outro lugar e nem está no futuro. A efetivação da liberdade é uma revolução existencial, que começa e se completa aqui e agora, não há outro momento onde isso possa ser feito, o passado já foi e o futuro não está tampouco disponível. Só temos o agora disponível para ser transformado e só mediante um mergulho no agora é podemos transformar o passado e o futuro.
22. Aquilo que chamamos de “eu” é algo muito problemático. Ao observarmos profundamente o nosso eu vemos que a cada vez que tentamos encontrar algo que seja a base de uma identidade intrínseca, nós o perdemos logo em seguida. Somos feitos de elementos que, separados, desfazem a ilusão da solidez desse “eu”. Somos, ao mesmo tempo, a água, os sais minerais, os elementos químicos do mundo orgânico e inorgânico, o sol e tudo o que sustenta nossa sobrevivência. Carregamos, além disso, as gerações passadas no nosso corpo e na nossa mente. Nossa existência não pode ser separada da existência do outro, do ambiente, do universo. No budismo chamamos a isso de ensinamento do “não-eu” e é um dos pilares da prática.
23. Thay também criou uma palavra nova para designar a existência nesses termos. Para além das especulações metafísicas acerca do Ser e do Não-Ser, Thay nos convida a pensar multidimensionalmente, envolvendo ao mesmo tempo processo e interdependência. Então ele chama isso de Interser. É um verbo também, não é apenas um substantivo. Ao existirmos, intersomos. Nós e o sol intersomos, você e eu intersomos. Nos e a sociedade intersomos. O sol e a lua intersão. As florestas e o nosso prato de comida intersão, assim como a sociedade e a natureza...E assim por diante. É uma maneira de adaptarmos a nossa linguagem aos ensinamentos, um modo de transformar uma noção de interdepedência, que poderia ser interpretada de maneira demasiado estática, em um verbo que transmite a mesma noção só que agora carregada de movimento, processo, possibilidade.
As cinco práticas, ou treinamentos da plena consciência são os seguintes:
Primeiro Treinamento
Consciente do sofrimento causado pela destruição da vida, eu me comprometo a cultivar a solidariedade* e a aprender maneiras de proteger a vida das pessoas, animais , plantas e minerais. Estou determinado a não matar, a não deixar que outros matem e a não tolerar qualquer ato de matança no mundo, no meu pensamento e no meio modo de vida.
Segundo Treinamento
Consciente do sofrimento causado pela exploração, pela injustiça social, pelo roubo e pela opressão, eu me comprometo a cultivar a gentileza amorosa e a aprender maneiras de trabalhar pelo bem estar das pessoas, animais plantas e minerais. Praticarei a generosidade, compartilhando meu tempo, minha energia e meus recursos materiais com aqueles que realmente precisam. Estou determinado a não roubar e a não me apossar de nada que pertença, porventura, a outros. Respeitarei a propriedade alheia, mas impedirei que outros lucrem com o sofrimento humano ou com o sofrimento de outras espécies sobre a terra.
Terceiro Treinamento
Consciente do sofrimento causado pela má conduta sexual, eu me comprometo a cultivar a responsabilidade e a aprender maneiras de proteger a integridade dos indivíduos, dos casais, das famílias e da sociedade. Estou determinado a não me engajar em relações sexuais sem amor e sem compromisso duradouro. Para preservar a minha felicidade e a dos outros, estou determinado a respeitar os meus compromissos e os compromissos dos outros. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para proteger as crianças do abuso sexual e para impedir que casais e famílias sejam desfeitos pela má conduta sexual.
Quarto Treinamento
Consciente do sofrimento causado pelas palavras descuidadas e pela incapacidade de ouvir os outros, eu me comprometo a cultivar a fala amável e a escuta profunda para levar alegria e felicidade aos outros e aliviá-los em seu sofrimento. Estou determinado a falar a verdade, com palavras que inspirem autoconfiança, alegria e esperança. Não divulgarei notícias que não tenham fundamento seguro e nem criticarei ou condenarei aquilo de que não tenha certeza. Evitarei pronunciar palavras que possam causar divisão ou discórdia, que possam desagregar a família ou a comunidade. Estou determinado a fazer todos os esforços possíveis para reconciliar e resolver todos os conflitos, por menores que sejam.
Quinto Treinamento
Consciente do sofrimento causado pelo consumo irresponsável, eu me comprometo a cultivar a boa saúde, tanto física quanto mental, para mim, minha família e minha sociedade, praticando a alimentação, a ingestão de líquidos e o consumo com plena consciência. Somente ingerirei ítens que preservem a paz, o bem estar e a alegria no meu corppo, na minha consciência e no corpo coletivo e na consciência da minha família e da minha sociedade. Estou determinado a não usar álcool, ou qualquer tóxico ou consumir alimentos ou outros ítens que contenham toxinas, como certos programas de TV, revistas, livros, filmes e conversas. Estou consciente de que prejudicar o meu corpo ou minha consciência com esses venenos é trair meus ancestrais, meus pais, minha sociedade e as gerações futuras. Trabalharei para transformar a violência, o medo, a ira e a confusão que existem dentro de mim e na sociedade, mediante uma dieta para mim mesmo e para a sociedade. Entendo que uma dieta apropriada seja crucial para auto-transformação e para a transformação da sociedade.
Quem é Thich Nhat Hanh?
24. Thây, como é chamado pelos seus estudantes e seguidores, é um Mestre Zen nascido no Vietnã. No final dos anos 60, com a proibição de retornar ao seu país, Thay se estabeleceu no sudoeste da França, onde construiu uma comunidade de leigos e monásticos que é, hoje, internacionalmente conhecida como Plum Village. Tornou-se famoso por ter cunhado a expressão “budismo engajado” nas suas atividades sociais no Vietnã em meio às guerras de libertação nacional nos anos 60 – primeiro contra os franceses e, posteriormente, contra os norte-americanos. Nunca tomou partido nesse conflito, a não ser ficar ao lado dos camponeses pobres e ser contra a guerra, sendo por isso perseguido por ambas as partes em luta. Por causa desse engajamento, foi proibido primeiro pelo governo pró-americano e depois pelo governo comunista do Vietnã de retornar ao país. Somente em 2005 é que, depois de dez anos de negociações, ele pôde retornar e publicar livros, inclusive obtendo espaço para dar palestras para os altos escalões do partido.
25. Sua comunidade possui monastérios e centros leigos de práticas espalhados pelo mundo, especialmente Alemanha, Inglaterra, Holanda, Itália, França, Estados Unidos, Canadá, países escandinavos, Vietnã, Tailândia e Hong Kong. Nestes locais são organizados períodos de práticas coletivas de meditação, partilha de experiências, reconexão, exercícios físicos e artísticos, reflexão sobre o mundo moderno e encontros interreligiosos formais e informais. Os participante são convidados a refletir sobre si mesmos e sobre seus vínculos com os ancestrais, com a natureza como modo a transformar esta experiência em uma base concreta para um engajamento social sólido.
26. Diferentemente das escolas budistas tradicionais, mas sm excluí-las, os grupos de prática não se caracterizam pela ênfase na construção de templos e performance ritual. A base de sua rede de praticantes são pequenos grupos que se reúnem semanalmente para relembrar os treinamentos e descobrir os melhores meios de atingir a libertação do sofrimento, entendido em sua dimensão coletiva, social e ambiental.
*Proponho aqui a tradução de Karuna (que em inglês é traduzido comumente por compassion) por Solidariedade (ao invés de compaixão, como acontece tradicionalmente). Ver Nota de Tradução da minha autoria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário